Literatura, Poesia,
Um espanto atrás do outro
Em seus poemas, o mestre do conto Raymond Carver devolve nossa atenção a tudo o que nos acostumamos a desprezar
13nov2018 | Edição #6 out.2017É inevitável, diante do livro de poemas de algum autor que se celebrizou por sua prosa, não apenas julgar em que gênero ele se sai melhor, mas também investigar como, digamos, em raias diferentes, ele nada numa mesma piscina, em que as águas da prosa e da poesia se confundem completamente. Machado, Borges, Hilst, Bolaño e outros mestres da prosa não deixam por menos quando se dedicam à poesia; guardadas as diferenças entre eles, é mesmo possível transitar entre suas obras de gêneros diversos percebendo como elas se completam e iluminam mutuamente.
Os cinquenta poemas de Raymond Carver escolhidos e traduzidos por Cide Piquet em Esta vida são uma boa prova disso. É importante assinalar que aquele que já foi chamado de “Tchekhov americano” nunca deixou de escrever poesia, e que não são poucos os ecos da prosa magistral de Carver — que aqui pode ser bem lida na antologia 68 contos, em tradução de Rubens Figueiredo (Companhia das Letras, 2010) — em seus poemas.
A contaminação prosa/poesia de Carver (como no caso de Bolaño) é profunda, passa além de certo tom da prosa que se mantém nos versos para envolver a recorrência aos mesmos temas lá e cá, o que resulta numa espécie de complementariedade entre as duas formas de expressão literária. Os poemas expandem os contos e vice-versa, ainda mais tendo em mente que Carver, nuns e noutros, sempre escreveu sobre o que estava próximo, sobre uma realidade a que pertencia – “esta vida” –, como se alçasse sutis voos ficcionais a partir da experiência nada ficcional com a vida de seus personagens – os quais, não raro, estão colados à sua biografia.
Isso, em grande medida, é decisivo também para dar forma à voz que fala nas obras de Carver, e até mesmo para a forma como Carver lia seus textos. Como assinala Cide Piquet, “é curioso notar, nos registros de áudio e vídeo, como Carver lê seus contos e poemas de forma praticamente idêntica, sem nenhuma inflexão ‘especial’ para a poesia”.
Essa constatação da unidade da literatura de Carver indica como são felizes as escolhas da edição. O tradutor buscou ser fiel ao “tom sempre direto, franco, claro, coloquial, nunca pomposo ou elevado”, e conservou no verso livre em português a espontaneidade da forma como Carver descreve paisagens e situações enquanto arma a narrativa dos poemas.
Aproximação
Todo cuidado para manter a linguagem o mais próximo possível do coloquial é crucial para atingir os efeitos que seus poemas (e mesmo seus contos) parecem buscar, de uma aproximação entre linguagem e realidade — aproximação que, por sua vez, é o instrumento capaz de levar o leitor, com o mínimo de mediações e volteios, a um mergulho na experiência de que o poema resulta e a que conduz. Carver nos leva para dentro do ambiente em que está. Não fala de fora, não olha de cima, não vê de longe. E nos quer por perto.
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Em “Esta manhã”, um poema sobre caminhada, não apenas somos levados no ritmo dos passos de Carver, como atingimos a sensação de esquecimento que a caminhada oferece e o poema exalta. É exemplar a forma direta como os versos montam o cenário para o início da caminhada: “Esta manhã foi especial. Um pouco de neve / cobria o chão. O sol flutuava num claro/ céu azul. O mar estava azul, e verde-azulado,/ até onde o olho podia enxergar”. Repare, ainda, como a tradução reproduz com precisão a cadência original: “This morning was something. A little snow/ lay on the ground. The sun floated in a clear/ blue sky. The sea was blue, and blue-green,/ as far as the eye could see”.
Há muito de casual e de generoso na poesia de Carver, como se estivesse sempre retribuindo, a seus leitores, a estrela-guia que um dia lhe caiu nas mãos
Esse parece ser o procedimento predileto de Carver: montar uma cena, uma paisagem, dispor novos elementos, aqui e ali alguma personagem ou voz e deixar que, no curso leve dos poemas, aconteça algo. Ou, talvez, que da exposição e do encaixe daqueles elementos resulte o poético: sem grandiloquência, sem torções desnecessárias, sem outros sobressaltos que não… os da própria vida.
Na “Pequena prosa sobre poesia”, espécie de crônica que apenas na aparência destoa do conjunto de seus poemas, Carver narra o encontro, na adolescência, com um senhor que lhe presenteou com duas publicações de poesia, quando ele nem sequer fazia ideia de que existia algo como uma “revista de poesia”. Carver chega ali para entregar remédios e sai com um exemplar da Poetry, revista em que, cerca de três décadas depois, viria a publicar poemas: “Eu era apenas um garoto, mas nada pode explicar ou dar conta de um momento como esse: o momento em que precisamente aquilo de que eu mais necessitava na vida — digamos, uma estrela-guia — me foi dado de modo casual e generoso. Nada remotamente próximo àquele momento aconteceu desde então”.
E há muito de casual e generoso, de fato, na forma como as coisas acontecem na poesia de Carver, como se estivesse sempre retribuindo, a seus leitores, a estrela-guia que um dia lhe caiu nas mãos, assim, sem arroubos, num momento qualquer do dia, para mudar de alguma maneira toda a sua vida. Ao nos lembrar, como faz no lindo “Bahia, Brasil”, de que “Esta vida. Quero dizer que é/ um espanto atrás do outro”, Carver entrega a chave de poemas que se dedicam calmamente à contemplação do que há de menos pretensioso na vida, pois é ali que reside seu maior espanto.
Na orelha do livro, a poeta Angélica Freitas ressalta que “os poemas de Raymond Carver também estão cheios de esperança e da capacidade de se maravilhar”. A impressão que temos, ao passar por Esta vida, é de que nossa atenção está sendo levada (ou devolvida) para tudo o que nos acostumamos a desprezar, justamente aquilo que poderia nos alimentar com esse misto de esperança e maravilha que a vida, na sua melhor parte, pode oferecer. Carver não precisa, em momento algum, gritar em nossos ouvidos para nos levar aonde quer. Pelo contrário. Parece, sim, é que estamos sentados ao lado de um amigo bom de papo que – com calma, mas sem cerimônia – conta uma história que viveu. E cada uma de suas palavras simples tem a contundência da melhor poesia.
Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.
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