Poesia,

O’Hara é o cara

Amor, desejo e luto norteiam coletânea de poesias do expoente da vanguarda nova-iorquina dos anos 1950

07nov2018 | Edição #1 mai.2017

Com Frank O’Hara ficamos sabendo que o coração também pode estar no bolso, ou num livro de bolso que estamos lendo, ou num quadro de Jackson Pollock que vamos ver, ou numa Coca-Cola que tomamos com alguém que amamos. Não é mais a mesma coisa que se aprende em Paul Valéry, que “o mais profundo no homem é a pele”. 

Não se trata de profundezas. Agora é a descoberta de uma superfície plana, onde a vida diária se deita, onde se erguem edifícios e há muitos bares, onde ninguém é obrigado a ser sempre o mesmo e onde talvez algo de bom aconteça inesperadamente. “Ninguém manda no coração”, diz O’Hara, antes de declarar que a melhor parte do seu — a sua poesia — “está aberta”.

Um pouco dessa abertura pode ser avistada através dos 25 poemas reunidos em Meu coração está no bolso, selecionados por Beatriz Bastos, que os traduziu junto com o mestre Paulo Henriques Britto. É uma amostra pequena, mas primorosa, de um dos maiores poetas americanos de todos os tempos, figura fascinante da vanguarda nova-iorquina dos anos 1950. Ágil como um ciclista, terna como um bate-papo na hora do almoço, muito urbana e altiva, a poesia de O’Hara inventa um lirismo ambulante, que vai a pé até os grandes temas, como o amor, o desejo e o luto. Virando uma esquina, ela pode até se deparar com o sublime, para afirmar “a graça/ de nascer e viver de tantos modos quanto possível”.

Ao lado de John Ashbery e outros, O’Hara formou a primeira geração da Escola de Nova York. O grupo surgiu no contexto de efervescência cultural da cidade no Pós-Guerra, marcado pela reviravolta trazida pela pintura de Pollock e Willem de Kooning, do movimento conhecido como “expressionismo abstrato” — ou action painting, termo cunhado por Harold Rosenberg.

Nascido em Baltimore, Maryland, em 1926, e criado numa cidadezinha de Massachusetts, onde estudou para pianista, O’Hara chegou a Nova York em 1951, recém-formado em Harvard. Logo se viu mergulhado na boêmia das artes plásticas, para a qual sua homossexualidade não era um problema. Passou a escrever sobre exposições, em revistas especializadas, e não demorou a arranjar um emprego no Museu de Arte Moderna (MoMA).

O’Hara e os outros poetas do seu círculo se situavam num ponto equidistante entre a ingenuidade meio romântica dos beatniks e o formalismo antissubjetivo dos language poets. Sua atitude desafiava a seriedade às vezes pedante que se impôs depois da Segunda Guerra Mundial, e chamava a atenção para a vida fervilhante do cotidiano, da fala coloquial, cosmopolita e livre de normas enrijecidas — mas nem por isso mais “fácil” de abordar artisticamente. Para Ashbery, O’Hara era a síntese daquele momento, por ser “muito descolado para os quadrados e muito quadrado para os descolados”.

Conhecedor da poesia moderna, ele buscava referências em Rimbaud, Maiakóvski e Pasternak 

Pelo lado mais quadrado, O’Hara era um conhecedor da poesia moderna, que buscava sozinho suas próprias referências, seja no simbolismo francês, de Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé, seja no lirismo russo atravessado pela revolução bolchevista, de Vladimir Maiakóvski e Boris Pasternak. Pelo lado mais descolado, soube incorporar à sua escrita a espontaneidade da conversação, da gíria e dos temas “baixos” de uma cultura industrial, como as pin-ups da propaganda, os astros de filmes b, os refrigerantes e até um intranscendente cheesebúrguer.

Há sessenta anos, ele radicalizava a aproximação da poesia à prosa, hoje apresentada como novidade na poesia brasileira. São famosos os seus poemas no estilo “eu faço isso, eu faço aquilo” (como ele mesmo os chamou) — “caminho pela rua quente”, “tomo um leite maltado” — nos quais a riqueza de uma vida ordinária ressurge evocada em fragmentos, nitidamente, apesar de inacessível em sua totalidade. (Nisso, seria parente próximo de Ana Cristina Cesar ou Francisco Alvim.)

Whitmaniano e torrencial, muito explícito às vezes, O’Hara manteve com Nova York uma relação de intensidade que só pode ser descrita como erótica. Ela era uma extensão, como a tela plana para Pollock, e nela ele podia experimentar a variedade vital exaltada em sua poesia. É de 1959 o antimanifesto “Pessoalista”, por uma escrita em que o poeta emerge do texto, sem se impor como essência prévia, e assim se desdobrar em personalidades múltiplas (individual, anônima etc.). Nessa antologia brasileira — uma genuína o’haridade —, o manifesto ecoa nos “eus transparentes” do poema “À memória de meus sentimentos”.

O’Hara morreu em 1966, aos quarenta anos, atropelado por um bugre de praia. Ela estava no apogeu. Publicara meia dúzia de livros, mas uma parte imensa de sua obra permanecia inédita em livro.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Alcides

Poeta e crítico literário, é autor de Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea (Verso Brasil).

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.