Poesia,

Helenas de Mayer

Poeta americana, publicada em livro pela primeira vez no Brasil, retrata de forma experimental as Helenas de Troia, Nova York

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

O poeta americano William Carlos Williams (1883-1963) dizia que devemos escrever sobre as coisas que estão diante do nosso nariz. A ideia para este livrinho memorável, publicado em 2013 nos Estados Unidos, estava a apenas algumas portas de distância da poeta americana Bernadette Mayer (1945), em East Nassau (NY): uma vizinha se chamava Helen e, que coincidência, tinha nascido numa cidade chamada Troia (Troy), também no estado de Nova York. 

Em seguida, ela ficou sabendo que havia um musical dos anos 1920 chamado Helen of Troy, New York: “Homero se glorificaria/ Ao escrever a história/ Das Helenas de Troia, Nova York”, dizia a letra de uma das canções. Então, Bernadette decidiu tomar para si a tarefa de cantar estas Helenas. Em 2009, pediu uma bolsa à Creative Capital, organização sem fins lucrativos que patrocina projetos de artistas americanos. Colocou um anúncio no Troy Record, jornal local. E rumou para Troia com a intenção de entrevistar e fotografar todas as Helenas que encontrasse, para depois escrever poemas sobre elas. 

Mas ninguém respondeu ao chamado de Bernadette, até que ela teve a ideia de colocar um outro anúncio, desta vez num centro municipal para a terceira idade. Pois já desconfiava que Helena tinha se tornado um nome antigo. Aos poucos, elas começaram a aparecer. A poeta conseguiu encontrar todas as Helenas da cidade, em número de quinze. Fez, portanto, quinze poemas, e mais um, “Uma História de Troia, NY” (que ganhou esse nome em 1789, “por amor à democracia”: “em um lugar onde os índios americanos viviam/ & ninguém era dono da terra, você podia nomear/ qualquer coisa de qualquer coisa”).

A maioria das Helenas eram senhoras de meia-idade para cima — muitas, octogenárias. (A mais jovem é a de sobrenome Carmody, de 28 anos à época.) Depois de feitos os contatos, Bernadette foi até a casa delas para conversar. Os poemas escritos a partir desses encontros são cheios de recordações. Falam sobre a vida das Helenas, mas acabam contando muito sobre Troia. Neles, aparecem nomes de cafés, restaurantes, alguns ainda em funcionamento: “eles iam ao verdile’s também/ um prato famoso se chamava braço peludo” (Helena Corrigan), “quando você é órfã dá para fazer qualquer coisa/ eu ia ao teatro proctor’s” (Helena Crandall), “havia padarias por todo lado/ um sinal de grande sorte, tantas/ padarias, inclusive a nelligan’s” (Helen O’Neill Davis). 

Em entrevista ao site da Poetry Foundation, Bernadette conta que uma das coisas que lhe surpreenderam ao realizar o projeto é que as pessoas realmente gostavam de ter crescido em Troia.

 As Helenas de Troia, NY ensina muito sobre poesia, experimentação, e sobre como pensar um livro de poemas. Mayer é uma poeta experimental que emprega também formas fixas, como sonetos, sextinas e vilanelas. Isso pode parecer contraditório, mas ela não tem reverência pelas formas (recomenda, inclusive, em sua famosa lista de experimentos, “usar uma forma fixa, como a sextina, e tentar destruí-la”). Ela as torce, estica, modifica: experimenta. Servem como forma de investigar a linguagem e o mundo. Vale dizer, também, que Mayer não acredita que seu aprendizado seja imprescindível. Quando uma aluna do curso de Poesia Moderna e Contemporânea Americana, organizado por Al Filreis, da Universidade da Pensilvânia, perguntou-lhe se deveria antes de mais nada tentar escrever sonetos, Bernadette foi enfática: “Não! Em absoluto! Fiz todo o trabalho por você. Você pode usar minha lista de experimentos. Não precisa escrever aquela porcaria de poesia escolar do século 19. Que não te ensina nada”.   

Helena, helena, helena 

O ponto alto do livro é o poema sobre Helena Crandall Whalen, uma vilanela: dezenove versos, sendo cinco tercetos seguidos de uma quadra, com versos contundentes e também engraçados que se repetem ao longo do texto (“todo mundo morreu”, “meu cabelo está trançado como uma família”, “fui embora, me diverti, amei partir” e “uma helena é o bastante, acredite”). Podemos nos perguntar se estes versos são repetições que alguma vez ocorreram na fala desta Helena, ou se foram um artifício escolhido por Mayer para ressaltar aquilo que mais lhe marcou na conversa.

A poeta volta a empregar repetições em “Helena Fremeag Mack”, mas desta vez de palavras dentro dos versos: “helena helena helena helena h,” “tias tias tias tias tias tias tias tias”, e “azul preto azul preto azul preto” — este último levou a tradutora, Mariana Ruggieri, a perguntar à poeta se essas cores tinham algum significado, se faziam referência a hematomas, ou se eram uma questão de som. A resposta que chegou foi bastante simples: “Preto e azul são apenas suas cores favoritas”. 

A tradutora escreveu a Bernadette, mas quem respondeu ao e-mail foi seu marido, o poeta Philip Good, que encaminha as mensagens de Mayer. Ela não usa computador, muito menos internet: é proprietária de uma máquina de escrever Smith Corona azul, em que trabalha com um dedo só, desde que teve um derrame, alguns anos atrás. Por causa disso, também, elabora seus poemas mentalmente antes de escrevê-los, uma atividade que dura quatro minutos e que ela chama de “actually thinking”, pensando de verdade.

Bernadette Mayer deu aulas no Saint Mark’s Poetry Project, em Nova York, e dessa experiência compilou uma famosa lista de experimentos de escrita. Dela constam sugestões como: faça diários das horas que você passa sozinha, de viagens no transporte público, de ideias para arquitetos, de situações senhorio-inquilino, de sonhos, de comidas. Outras instruções: “Tente escrever num estado de espírito que pareça o menos propício”, “Convide um ou dois amigos para escrever por você, fingindo ser você”. Algumas são dicas valiosas de sobrevivência: “Nunca dê ouvidos aos poetas ou a outros escritores; nunca explique seu próprio trabalho (experiência de comunicação)”. A tradução dessas instruções é da poeta Marília Garcia, que as publicou no segundo número da revista Grampo Canoa (download gratuito na página da editora Luna Parque). E a lista original pode ser encontrada em http://www.writing.upenn.edu/library.

As Helenas de Troia, NY é, incrivelmente, o primeiro livro de Bernadette Mayer publicado no Brasil. Saiu por uma pequena editora, a Jabuticaba, que também publicou a canadense Anne Carson, outro nome gigante da poesia contemporânea em língua inglesa. Hoje, são as editoras independentes brasileiras que estão fazendo o trabalho mais interessante na área da poesia. Poetas já sabem disso, mas vale deixar registrado aqui para quem lê. 

Quem escreveu esse texto

Angélica Freitas

Poeta e tradutora, escreveu Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.