Estrofe, refrão, ponte

Poesia,

Estrofe, refrão, ponte

Lana Del Rey intercala poemas e fotografias em novo livro que espelha o universo melancólico e fascinante da cantora

26mar2025 | Edição #92 abr

Fazer uma ponte com o corpo é um movimento fácil na infância e vai ficando mais difícil ao longo da vida. Arquear o corpo, voltar a barriga para o céu, oferecer o umbigo para o espaço e nunca para o chão, enquanto as mãos e os pés sustentam o peso corporal. Está feita a ponte. Em alguma festa, a cantora, compositora e poeta Lana Del Rey viu Violet, sete voltas ao sol — com aquela alucinação que só as crianças possuem —, fazendo tal pose. É dessa cena prosaica (embora seja mesmo hipnotizante ver pequenos seres contorcidos com facilidade) que surge o título do seu primeiro livro de poemas: Violet faz a ponte sobre a grama.

Quando Lana Del Rey surgiu, fui impactada pela letra e pela melodia de “Video Games”: “It’s you, it’s you, it’s all for you”. Parecia que ela cantava para mim. E acho que todo mundo sentiu o mesmo. Quem era aquela gata triste com aquele videoclipe caseiro curiosíssimo? Imagens glamourosas e decadentes, uma sensação de “Ah, eu poderia ter feito esse clipe com a minha cyber-shotzinha”. Foi avassalador, bem lembro.

Com algum respeito aos bichos indomáveis que nos habitam, Lana Del Rey conseguiu sobreviver ao showbusiness mantendo sua personalidade e fazendo poucas concessões. Claro, não sou sua psicanalista para saber onde é que a coisa aperta, mas ao pensar em outras divas pop da sua geração, percebo que sua trajetória musical é autêntica e que, ainda que 20 milhões de pessoas estejam de olho na sua vida, ela consegue flertar com o universo alternativo.

Como em suas músicas, há palavras perspicazes, atmosferas oníricas e paisagens próximas

Ao ler seu livro, tive a mesma sensação que ao ouvir suas músicas: palavras perspicazes, atmosferas oníricas e paisagens próximas — ainda que não. Sei nada vezes nada sobre Monte Rushmore, Lake Arrowhead ou Dakota do Sul, mas Lana me conta sobre tudo isso e eu vou lendo, concordando e quase murmurando “sei, menina, sei”. E no fim, já nem murmuro, porque ela me coloca em suspensão com os finais dos seus poemas.

É ouch depois de ouch. Ela é boa nas inaugurações (“Mantenha-se em seu caminho Sylvia Plath/ não caia como todos os outros”), ótima em desenvolver (“L. A./ Escolhi São Francisco porque o homem que não me ama mora lá”) e excelente ao arrematar (“quanto mais eu me tornar uma poeta/ menos eu vou acabar na cama com você”). É como em suas canções: estrofe, refrão, ponte. Ela vem com tudo em todas as divisões, não tendo preferência por ápices. Às vezes o refrão retorna depois da ponte, às vezes a outra estrofe muda algumas palavras, mas não necessariamente. Lana também faz ponte sobre a grama. 

Vibração enigmática

O livro intercala poesias, inclusive haicais, com fotografias coloridas e em preto e branco. Algumas são da própria cantora e outras são de Melissa Catanese e The Ice Plant. Há também belas pinturas da artista e ilustradora Erika Lee Sears. Todas as imagens remetem ao universo de Lana: mesmo que seja uma foto da natureza, você sente o cheiro de um coração partido. Há também a fissura da era norte-americana dos anos 1950. Marilyn Monroe poderia estar em quase todas as fotografias. Belíssima, porém triste; forte, porém solitária — como Lana canta na música que nunca foi lançada oficialmente, “Puppy Love”: “Cause I’m strong but I’m lonely like Marilyn Monroe”.

Apesar da vibração enigmática e de se considerar uma pessoa introvertida, Lana alcançou cifras bem altas, mas nos conta em sua poesia que “eles escrevem que eu sou rica e eu sou, mas não como eles pensam”. Talvez seja exatamente o que eu penso, mas poesia é poesia e Lana sabe bem o que está fazendo ao escrever esse livro. Há quem saiba juntar palavras apenas de forma melódica. Lana vai além. Também sabe escrever sem som, ainda que muitas frases do livro pudessem ser frases de canções: “You move like water/ sweet baby/ sweet waiter”, no único poema em que a versão traduzida acompanha a original, “Quiet Waiter — Blue forever”. 

Lana Del Rey já revelou ter uma doença depressiva séria, à qual nunca conseguiram chegar em um diagnóstico preciso. Isso em parte explica a melancolia sempre presente em suas canções e poesia. Muitas cantoras contemporâneas optaram por algo mais leve e alegre, com batidas dançantes. E apesar da maquiagem impecável e uma preocupação estética pulsante, Lana emburacou, pesou o chill out, deitou no divã, nunca mais levantou e tacou um acorde menor, mesmo quando a letra pedia um clima para sol maior. 

Os clipes são recheados de joias, glamour, amizades e festas, tal qual suas colegas de profissão, mas a tristeza está sempre ali do lado, encostando a cabecinha no ombro. Com o livro não é diferente. Na única foto em que aparece, na frente de uma bandeira dos EUA, Lana sorri. Penso em Norman Rockwell e suas ilustrações de cenas da vida estadunidense nas pequenas cidades. Obviamente, Lana já mergulhou nesse universo: seu sexto álbum da carreira se chama Norman Fucking Rockwell. Mas sua melancolia é tão avassaladora que a vislumbro mais perdida em alguma pintura de Edward Hopper. “Morning Sun, talvez. A mulher olhando para a vista da janela. Apesar da luz, é o olhar tristonho que ganha nossa atenção. Ninguém capturou o isolamento do ser humano na cidade moderna como Hopper.

A bandeira balança, Lana sorri, mas o tom do livro é como sua carreira musical: apesar de alguns momentos otimistas, a tristeza impera. Lágrimas nostálgicas, crises existenciais, dramas românticos e até um lamento político dão as caras: “O paraíso é muito frágil e parece que está só piorando/ Nosso líder é um megalomaníaco e parece que já vimos isso antes”.

Inquietação existencial

O livro foi publicado em 2020 e agora, cinco anos após o planeta parar por conta da Covid-19, alguns de seus tópicos continuam ecoando. Lana nos conta que “lá em Los Angeles as coisas não estão muito melhores/ minha casa na árvore que ficou de pé por 60 anos sucumbiu aos incêndios de Woolsey”. Sendo que Los Angeles foi recentemente assolada pelos maiores incêndios florestais já registrados. 

É intrigante o fascínio que Lana Del Rey sente pela Costa Oeste dos EUA. Ela nasceu na Costa Leste do país, na cidade de Nova York, mas cresceu na pequena Lake Placid (NY), onde a vida Norman Fucking Rockwell correu até que voltasse para a cidade natal para estudar metafísica. Ela já demonstrava as inquietações existencialistas que levaria para sua vida musical: “Been tryin’ hard not to get into trouble, but I’ve got a war in my mind/ So, I just ride”, canta em “Ride”, do álbum Born to Die, de 2012. E também para sua poesia: “Meus pensamentos não estão à venda/ eles são sobre o nada/ e são belos e gratuitos/ eu queria que você pudesse entender isso/ e amar isso em mim”.

Tal qual Medusa, Lana sabe se transformar em monstro rapidamente e dar um corte lacaniano

Dona de uma beleza digna de atrizes antigas de Hollywood, Lana poderia cair no próprio corpo e formosura ao escrever sobre a graça das feições ou apenas entrar em labirintos mais físicos. Mas há poucas menções a esse campo. E quando surgem, se encaixam bem. Se algum pensamento de “lá vem a princesinha choramingar” surge, eis que, tal qual Medusa, ela sabe se transformar em monstro rapidamente e dar um corte lacaniano.

E a beleza do nome dela me lembrou/ Que eu sou bela/ Que algumas coisas são belas sem motivo/ Que nem todo mundo precisa fingir que ama o namorado só porque sua mãe está morrendo. 

Gosto de ler gente que gosto de ouvir. Até porque já conheço o timbre da voz, então posso me valer da coisa mais preciosa que possuo (minha imaginação) e vislumbrar Lana Del Rey pensando naquelas frases, recitando aqueles poemas. Sei que há uma versão audiobook, mas ainda não tive coragem de ouvi-la. Guardarei para um momento certo.

Preciso confessar que tenho certo fascínio por quem gosta da autopiedade. Principalmente aquelas pessoas muito famosas, que apesar de serem gratas (são?) não conseguem acalmar as próprias angústias. Não tenho tanta autopiedade (não?), mas como Lana não consegui acalmar minhas angústias, então quando leio “você não quer ser esquecido/ você só quer desaparecer”, dou aquela concordada com a sobrancelha erguida. 

Lana Del Rey quer ser observadora, ainda que seja a grande observada. Aquela velha história. Fascinante história. Lana quer ver crianças dando cambalhotas, cortar vegetais para um ensopado enquanto está descalça, escolher um vestido, escolher se vai mergulhar no mar ou no lago. É fácil deslumbrar-se com onze indicações ao Grammy, tapetes vermelhos, mas surge um outro ouch

eu não sou uma capitã
eu não sou uma pilota
eu escrevo.
eu escrevo.

Quem escreveu esse texto

Letícia Novaes

a Letrux, é cantora, compositora e escritora.

Matéria publicada na edição impressa #92 abr em março de 2025. Com o título “Estrofe, refrão, ponte”

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Ecobag Exclusiva

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!

Entre para nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.