Poesia,

Canções do quase

Em seus poemas, Marcelo Montenegro registra os vazios que precedem a rigidez dos fatos consumados

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Marcelo Montenegro é poeta, roteirista, iluminador e possui uma relação estreita com a música, tendo lançado recentemente o álbum Tranqueiras líricas, registro do show que apresenta desde 2005, lendo poemas ao som da guitarra de Fabio Brum. Não é à toa, portanto, que um dos traços fundamentais de sua escrita seja a interlocução com outros campos da arte. As referências ao cinema, à música, ao teatro, à televisão e às artes visuais são constantes em seus poemas, que poderão ser lidos em Forte apache, a ser publicado em fevereiro de 2018. Além do trabalho homônimo, com poemas inéditos, o volume reunirá duas obras anteriores do autor: Orfanato portátil e Garagem lírica, de 2003 e 2012.

No poema Forte apache, que reflete as tensões entre particular e universal, Noel Rosa convive com Elvis Costello e Ferreira Gullar, em alusões que, justapostas, vão formando um compêndio de ideias afins, mas sutilmente distintas e de simetria imperfeita.

Noel Rosa dizia que era universal sem sair de
seu quarto. Elvis Costello disse que o rock’n’roll
não morrerá porque sempre vai ter um garoto
trancado em seu quarto fazendo algo que ninguém
nunca viu.
[]
Como escreveu Ferreira Gullar no Poema sujo,
‘o que me ensinavam essas aulas de solidão?’

O recurso da enumeração de referências, na poesia de Montenegro, não resulta em emulação ou mero acúmulo de imagens e citações, mas produz aproximações afetivas entre ideias, anedotas e universos certamente caros ao autor, e que partilham, no poema, de um teto comum, compondo pequenos ensaios sobre a recepção e o fazer artístico.

Essa espécie de colecionismo característico de sua escrita se verifica também na atenção a detalhes da experiência que, por muito pouco, poderiam passar batidos. É o que se lê no poema de abertura, “Três pensatos”. Vale lembrar que, no vocabulário musical, pensato se refere a uma espécie de nota imaginária: ainda que seja escrita na partitura, por ser tão delicada e suave, não chega a ser tocada nem ouvida — apenas pensada, intuída. Cito alguns versos do poema:

PENSO naquela única gota
gelada do chuveiro quente.

[]
Penso em calços de papelão
para pianos mancos.

Assim, em diversos poemas, revela-se o tino aguçado do poeta para momentos em que ocorre uma espécie de suspensão do sentido: como num bloco de notas, Montenegro registra quase-acontecimentos, escapes, sobras e espaços intervalares que antecedem a rigidez do fato consumado, ou em que se está “perto de perceber alguma coisa”.

São essas situações liminares que Montenegro investiga em sua escrita, como se quisesse fisgar tanto algo que está prestes a acontecer (“não, não uma bebedeira, mas o começo/ encantador da embriaguez”) como aquilo que passou do prazo, tal qual “canções que não chegaram a tempo”. Esses pequenos extravios, portanto, ressoam em seus poemas na mesma medida em que há neles algo sempre à espreita, em estado latente:

Alguma espécie de espanto, quase
um riso, ancorado no ainda não.

O espanto, aliás, é tematizado muitas vezes pelo poeta, que identifica nos desvios cotidianos (“a chave brigando/ com a fechadura”) o mistério daquilo que, num relance, nos atinge sem sabermos por quê, no “ponto exato/ onde deram nó”. 

Montenegro parece não se ressentir do fracasso que é inerente a todo trabalho poético — pois, como escreveu Ben Lerner, há sempre um lapso entre o “potencial abstrato” do poema e o que de fato escrevemos. Ao invés disso, reconhece com leveza a existência do intangível e comemora aquilo que só poderia ficar de fora do poema: “Esse frio na barriga onde mora/ o que não sei dizer”.

Há, nesses poemas, uma ternura rara para tempos tão esquivos. Daí, talvez, essa espécie de lembrete, de elogio da prontidão — atitude vital a todo poeta:

A gente nunca sabe a hora
E é sempre a hora exata

De se olhar. 

Quem escreveu esse texto

Julia de Souza

Poeta, é autora de As durações da casa (7Letras), Gigante vermelha (7Letras) e Covil (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.