Literatura brasileira,

Fruta mordida

Coletânea joga luz sobre a poesia de Maria Lúcia Alvim, tensionada entre a natureza, as palavras e o erotismo

01fev2021 | Edição #42

Nota do editor: A poeta Maria Lúcia Alvim, nascida em Araxá (MG), morreu aos 88 anos, vítima de Covid-19, na quarta (3) em Juiz de Fora (MG).

Umbigo de bananeira
os lábios dela
por onde nasci
Ladeada de lágrimas
espargindo seu nome
Depositei sobre o túmulo
Uma a uma.

O segundo poema de Batendo pasto, de Maria Lúcia Alvim, costura, em apenas sete versos, as principais linhas de força desse livro: o reconhecimento dos corpos, os corpos que se confundem com o bioma ou dele se alimentam, a questão da origem, o ato prodigioso de nomear — e, como veremos, a qualidade ambivalente, multiforme e luxuriosa de todo nome.

Escrito em 1982 e trazido à luz agora pelo esforço conjunto dos poetas Ricardo Domeneck, Guilherme Gontijo Flores e Paulo Henriques Britto, Batendo pasto chega para nos defrontar com a potência e a precisão da escrita de Maria Lúcia Alvim. Nascida em Araxá (MG), em 1932, e ainda viva, a poeta compartilha o sobrenome e o ofício com dois irmãos: o celebrado Francisco, dono de uma escrita conhecida por sua ironia e concisão e que oscila entre a acidez e a ternura; e Maria Ângela, a mais velha, que morreu precocemente e publicou, em vida, apenas um livro, Superfície (1950), marcado por um lirismo elegante, de teor místico e especulativo. Maria Lúcia, a irmã do meio, já havia publicado cinco livros de poesia entre 1959 e 1980, e teve sua obra reunida em Vivenda (1989), pela coleção Claro Enigma.

Multifacetada, Maria Lúcia exercitou com maestria tanto as formas poéticas tradicionais como o verso livre, o poema-piada, os pastiches e as construções poéticas espacializadas. Tamanha versatilidade, sempre atrelada a uma lucidez aguda com relação à própria escrita (o que faz com que essa produção, ainda que mais breve, se irmane a obras prolíficas como a de Drummond), já seria motivo suficiente para mobilizar a atenção da crítica. Porém, talvez justamente pela sua qualidade desprendida de escolas específicas e das neovanguardas, a obra de Maria Lúcia não se difundiu e não foi estudada como merecia — e, mais do que nunca, merece. Some-se a isso, como escreve Domeneck no prefácio, “a marginalização da escrita de mulheres no cânone, o pavor do não-típico” e a “tragédia cultural contínua, de um país que não se cansa de desperdiçar poetas”. Para celebrar e fazer jus a esse importante retorno, sigamos, então, rente ao pasto.

Safra

“Bater pasto” compreende um largo de sentidos: capinar, semear, plantar, colher, armar curral, arrancar as pragas pela raiz. Bater pasto é estar e atuar na terra fértil; e, no limite, fundá-la. A relação frutífera e zelosa com o solo se aproxima do trato da poeta com a linguagem: o poema é fruto do cultivo — semear, podar, capinar, purgar. Não soa gratuita, portanto, a longa distância entre o livro anterior e este. Toda safra é feita de lapso. 

Pode-se argumentar que a ideia de lavoura se adéqua genericamente a todo trabalho poético. Aqui, no entanto, ela é central, e suas ocorrências se dão de inúmeras formas, de modo abundante. E trabalhar a terra, aqui, é também consagrar tudo aquilo em que plantamos nome. “O capim é minha grande reserva interior.”

Batendo pasto se funda numa espécie de degustação da língua, numa abordagem labial e libidinal da palavra e num reconhecimento da abundância dos meios, sejam eles verbais, sejam orgânicos: 

Figueira-brava
provei tua doçura
morácea
tuas flores invisíveis encerradas em
receptáculo carnoso.

Assim, o título da primeira parte do livro — “Êxtase” — anuncia uma escrita que reconhece o fascínio, o relevo e a volúpia da língua, que é aqui, além do idioma, o músculo que desponta dos lábios e não apenas articula a fala (“Speak!”, lê-se no poema de abertura), mas também saboreia e perfura o mundo: “Língua/ clystère d’extases”.

Esse último verso, aliás, conduz a outra característica central da língua de Alvim: seu aspecto críptico, misterioso, que se manifesta não só na profusão de vocábulos estrangeiros, mas na longa lista de palavras raras que estalam nos poemas e aguçam nossas capacidades associativas: acaso “súcubo” tem a ver com sucumbir? “Frege”, com “frigir”? “Grassar”, cujo sentido é “espalhar-se”, parece também um verbo que funda a “graça”. O leitor diletante não poderá entrar em contato com toda a complexidade poética de Batendo pasto. É preciso se entregar à capacidade mobilizadora dos poemas. Quando incluía passagens mais desafiadoras em suas crônicas, Hilda Hilst escrevia a seus leitores: “Informe-se”.

O desafio de um vocabulário excepcional revigora e atualiza nossa relação com a língua, destitui-nos do assento preguiçoso das leituras en passant e nos lembra da exuberância daquilo que demos como morto: a força da fênix, a força rutilante de uma palavra tão nova porque há muito esquecida: “galarim”; “espaventar”; “óbice”; “ajoujar”. Informemo-nos!

Chamam a atenção as ocorrências de vocábulos que revelam uma inflação de significados: “Pojar”, que encerra um dos poemas, tem dois sentidos inusitados: indica tanto “desembarcar” como “intumescer”. Entre esses termos intumescidos de sentido, talvez o mais emblemático — se quisermos pensar no aspecto erótico — seja “súcubo”. A palavra se encontra no primeiro dos cinco sonetos, “Do usufruto”. O poema anuncia, desde o início, tratar justamente da fruição das palavras. O “súcubo” surge na quinta página, onde as palavras se embaralham, numa colisão de sons e sentidos. Alguns dos sentidos de “súcubo”: 

“1. Aquilo que se coloca por baixo [lembremos do pasto!]; 2. Aquele que se coloca por baixo na cópula carnal; 3. Aquilo que desperta desejos sexuais; 4. (No vocabulário botânico) Folhas hepáticas cujas margens são sobrepostas pelas margens da folha subsequente; 5. No imaginário da Antiguidade, demônio feminino que, em busca de sexo, perturba o sono dos homens”. Ora, uma palavra tão enxuta é capaz de evocar tanto o campo da libido como o da botânica, sempre sob o signo da baixeza — o que está por baixo, ao rés do chão, de tocaia: perto do pasto.

Tempo

A memória surge como pedra fundamental de uma perspectiva poética e de uma vocação sensível, e as questões da origem e dos eventos de formação são importantíssimas em certos trechos. O sujeito se configura de forma processual, sempre às voltas com um fazer-se e desfazer-se: 

fava por fava
fui pedindo, fui rasgando, fui doando
lóbulo mindinho. 

A infância é revisitada e seus impactos, depurados (“a chita do balaio é o passado”) e, por vezes, só se pode retornar aos primórdios quando é o fim da vida que está no horizonte, como no poema sobre o seu próprio caixão, em que a poeta alinhava crescimento e morte. Mas o tempo presente também vibra: em sua poética há certo paroxismo, uma atenção àquilo que é usufruído no momento da escrita e da leitura, além da defesa de um futuro, de algo que ainda vai brotar, como reza a lei daqueles que cultivam o solo: “Aquilo que na moita irá grassar”.

Mato

No prólogo, Paulo Henriques Britto, a quem os originais do livro foram confiados para publicação póstuma, analisa brilhantemente um dos poemas mais enxutos e de maior força: “Meus olhos são como dois bacorinhos/feridos de morte”. Há pouco a acrescentar; no entanto, mais uma vez a questão vocabular desponta: “bacorinhos”, aponta o poeta, é diminutivo de “bácoro”, porco jovem. Na busca ao dicionário, porém, encontra-se um outro sentido: “bacorinho” é também um tipo de figo, “pequeno e temporão.”

Ora, essa dualidade semântica, além de mais uma prova da sofisticação vocabular, também ilustra a vivíssima relação da autora com a natureza — o mundo natural em sua multiplicidade de formas, cores e corpos. Se depurarmos o vocabulário do livro, encontraremos um inventário de espécies de plantas e animais, que superpovoam o conjunto.

Batendo pasto, sugere Britto, é uma “espécie de égloga moderna”. A égloga é um gênero pastoril e dialógico. Os travessões, presentes em muitos dos poemas, atestam essa hipótese: não há aqui uma voz unívoca, mas, por vezes, algo próximo de um coro, de ecos que conversam e cantam a partir da natureza e em torno dela. 

O poema dos bacorinhos, ademais, sintetiza a relação de continuidade entre corpo e entorno que desponta em inúmeros poemas: para além do pasto, do capim que recheia a poeta, animais e plantas atravessam, contaminam e formulam a compleição do sujeito lírico — que se cinde, se reproduz, mas também se fere e perfura. “Não quero dominar a natureza”, diz um dos versos. O que parece se engendrar na escrita de Maria Lúcia é um vínculo de reciprocidade empírica e entre natureza e sujeito:
 
minhas artérias pubescentes
pulsaram no batismo do teu nome
árvore-corpo
pojando.

E o curral, palavra que denota de forma ampla um espaço de cerceamento da natureza pelo homem, aparece como anteparo do imponderável: 

Curral
é onde o real
passa por cima.

Nenhuma tentativa de domínio é capaz de driblar o pasmo. Ou ainda: o pasto também é pasmo.

Repetições e ecos são frequentes. Instigam uma nova voltagem nas palavras, que são repisadas, insistem, obstinadas. Por outro lado, às vezes resultam em uma suspensão: algo se esgota na consciência de quem lê ou escuta o eco. O excesso, a palavra duplamente semeada, deriva no abismo do silêncio: “— Amanhã eu vou…/— Amanhã eu vou…”.

Se depurarmos o vocabulário, encontraremos um inventário de espécies de plantas e animais

As palavras ressoam e se desfazem em volutas no ar. Ou, ainda, perduram como marca na pele (“ferroa ferroa”), tensão ou fantasmagoria: a repetição produz o aprender de cor, par coeur, e o aprender de cor pressupõe o esquecimento. 

Os morcegos são filhos indesejados 
[da noite […]
Pendurados
na parte mais alta do meu coração.

É inegável que a repetição vocálica — muscular, de língua — está intimamente ligada ao gozo. A vocalização reiterada implica investimento mais radical na palavra e na linguagem — a repetição pode ser liturgia, rogo, ladainha, mas também chamado, gemido (“quente quente”), perdição: 

quero mais
altos padrões da cólera
mais mais.

Batendo pasto pulsa: dá a ver a abundância das formas, a persistência das línguas, o deleite da carne das frutas e das palavras. Lembra que desejo e delícia fazem do corpo uma estrutura aberta e vulnerável. E que toda língua é desafio e lavoura. Escrever e ler é “imolar as palavras”, desbastá-las e exaltá-las em seu mistério. Maria Lúcia encontra na linguagem os “aparatos da paixão” — e, no pasto batido, o desejo retomado: “nestas paragens os recursos do medo são tão escassos”!

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Julia de Souza

Poeta, é autora de As durações da casa (7Letras), Gigante vermelha (7Letras) e Covil (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.