Poesia,

A poeta sem exagero

Biografia e antologia abrem portas para o universo de Wislawa Szymborska, Nobel de literatura de 1996

01set2020 | Edição #37 set.2020

Num recital, respondendo a um leitor sobre o que tinha em mente ao escrever o poema “Conversa com a pedra”, Wislawa Szymborska respondeu: “A pedra”. A polonesa, laureada com o Nobel de 1996, repetia com insistência que a poesia deveria ultrapassar o óbvio — e se a resposta cortante parece sugerir um elogio da redundância, o poema aborda justamente o mistério e o assombro com relação ao que ela chamou de “paisagem do mundo”.

“Wislawa sempre gostou de escavações e pedras”, contou sua amiga Urszula Kozioł. “Ela acreditava que era nisso que a civilização estava impressa.” Trata-se de um entre os incontáveis e valiosos depoimentos coletados por Joanna Szczęsna e Anna Bikont na biografia Quinquilharias e recordações, lançada na Polônia em 1997. Ainda que Szymborska estivesse vivíssima, as biógrafas não tinham, até então, tido sucesso em suas tentativas de aproximação com a poeta, que se esquivava de entrevistas, cultivando o seu direito à reserva emocional e ao discernimento entre vida e obra.

A edição brasileira coincide com a publicação da nova antologia Para o meu coração num domingo. A tradução e seleção são de Gabriel Borowski e Regina Przybycien, esta última também responsável pela excelente tradução das duas bem-sucedidas antologias Poemas (2011) e Um amor feliz (2016). Organizado em ordem cronológica, Para o meu coração num domingo traz uma seleta de poemas — todos eles inéditos por aqui — de cada um dos onze livros lançados por Szymborska a partir de Chamando pelo Yeti (1957), primeira obra em que os versos se mostram menos atrelados à estética do realismo soviético. 

Quando fragmentos da biografia foram publicados, as jornalistas receberam uma ligação da poeta

A sincronia desses lançamentos é motivo de celebração: muitos dos temas explorados pelas biógrafas se refletem nos poemas de Para o meu coração num domingo — os sonhos, as guerras, a afeição pelos animais e a natureza, o diálogo com a ciência, a atenção às minúcias, o grande amor. Ademais, a nova antologia parece revelar de forma mais panorâmica tanto as reviravoltas emocionais de sua poesia como aquilo que é nela constante e persevera ao longo dos anos: a circunspecção, o alto teor de crítica, a aversão a toda exuberância tonal, a coexistência do riso e da melancolia, além dos motivos que atravessam toda a sua obra, como o desconforto diante das multidões, dos grandes números, da vastidão e de tudo o que não pode ser apreendido por seu olhar míope. No poema “Resenha de um poema não escrito” encontramos traços desse pavor: 

Na descrição do céu dá pra sentir certa 
[impotência
a autora se perde na horrível imensidão.

Escavações

A pesquisa de Szczęsna e Bikont teve início, curiosamente, com uma análise das Leituras não obrigatórias, as crônicas sobre livros de assuntos inusitados que Szymborska publicou por mais de trinta anos em jornais poloneses. A partir das Leituras, as jornalistas reuniram informações sobre gostos, hábitos e princípios da autora. Porém, o conjunto das crônicas — esse incrível gabinete de curiosidades — não constituía material suficiente para o projeto, que pretendia formular não apenas um retrato das inclinações literárias e das idiossincrasias de Szymborska, mas também uma cronologia consistente e uma espécie de cartografia afetiva de sua trajetória. Recorreram, então, a mais de uma centena de amigos e conhecidos dela. Esses intercâmbios, bem como a pesquisa em arquivos da cidade natal da biografada, abasteceram as duas autoras de anedotas, fotos, lembranças e datas.

Em janeiro de 1997, quando fragmentos da biografia foram publicados na Gazeta Wybrcza, ao lado da árvore genealógica de Wislawa Szymborska — também elaborada por Szczęsna e Bikont —, as jornalistas receberam, enfim, uma ligação da poeta.

“É uma sensação terrível”, Szymborska lhes disse, “ler sobre si mesma.” Mas, reconhecendo o empenho delas, concedeu-lhes um encontro. Se a primeira versão não contou com “a voz” da poeta, a que chega às mãos do público brasileiro, publicada na Polônia em 2012 — o ano de sua morte —, é recheada de comentários de Szymborska, que corrigiu erros, acrescentou dados e detalhou passagens. Assim, a versão definitiva vai na contramão das biografias não autorizadas: a biografada — ou a “matéria-prima”, nas palavras da poeta — como que dá as mãos às biógrafas, e o resultado é uma narrativa rica em minúcias e perspectivas, mas também um texto que trai certo acanhamento das autoras. 

Não estamos diante de uma biografia ensaística ou de cunho teórico, e sim de um impressionante compêndio de informações e impressões sobre a história, a índole e a produção da poeta. A biografia elabora uma articulação entre fatos da vida, depoimentos de amigos, críticos e a obra de Szymborska, de modo que essas três frentes de investigação se ativam mutuamente. Trata-se, antes, de um trabalho de exposição, associação e análise, já que as autoras não têm em vista o gesto da interpretação — a decodificação de um corpus em busca de seu sentido latente ou verdadeiro.

Detalhes

“Vejam quantas extremidades tem esse bastão”, escreveu Montaigne. A frase era repetida por Szymborska como uma espécie de lema de sua criação literária, que encontra forças num interesse excepcional pelos detalhes, pelos temas extraviados e por toda sorte de coisas e imagens aparentemente insignificantes ou banais. 

Nesse sentido, Szczęsna e Bikont tomaram uma decisão atinada ao eleger as Leituras não obrigatórias como arranque da pesquisa. Ao resenhar de maneira desprendida, em formato de crônicas ensaísticas, os livros condenados à “prateleira de baixo”, Szymborska dissertou sobre obras de teor enciclopédico, biografias, estudos de astronomia, manuais e até calendários ilustrados. Wislawa “confessou que a indiscrição maliciosa costuma ser deliciosa na leitura”, e que gostava de livros que “fossem suficientemente interessantes para afastar os pensamentos das preocupações diárias, mas também suficientemente soníferos para que, no momento adequado, caíssem das mãos”. 

De fato, a apreciação do extensivo trabalho nessas resenhas é essencial para quem deseja se aproximar mais detidamente de sua obra: ali se revelam não apenas os interesses, os costumes e a veia sarcástica da poeta, mas também suas escolhas estilísticas e o frequente escambo temático e formal entre crônica e poema. Tópicos dos quais a poeta se ocupou nas Leituras retornam, anos depois, em poemas — e vice-versa. É o caso da ilha perdida de Atlântida, ou das plantas que, nomeadas e descritas poeticamente numa crônica, reaparecem no belo poema “O silêncio das plantas”. 

As biógrafas também lançam luz sobre o Correio Literário, seção em que Wislawa respondia anonimamente a leitores que enviavam sua produção ao Życie Literackie, onde trabalhou por quinze anos. É nessas respostas que a inclinação zombeteira da poeta se revela com mais vigor, e também onde podemos encontrar parte de suas raras considerações sobre o labor poético — o anonimato por certo lhe rendeu um desembaraço que ela não exercitava em suas declarações públicas, nas quais quase sempre evitava falar de poesia. Ao alertar uma leitora para os perigos da adjetivação, ela é certeira: “Até o poema mais lindamente planejado naufraga, como uma embarcação repleta de água”. A ironia é outra marca: “Agradecemos pelo poema e pela fotografia. O nó de sua gravata está muito bem-feito”; “Por enquanto, o senhor poderia escrever um interessantíssimo catálogo telefônico”. 

Jocosas ou não, as cartas de Szymborska, como fisgaram suas biógrafas, carregam uma espécie de arte poética fragmentária. A antipatia pela grandiloquência e pelos derramamentos sentimentais, a concepção de poesia como jogo, o rigor matemático e a valorização do conhecimento e da leitura, critérios empregados por ela na avaliação dos originais, são pedras de toque de sua própria criação.

Alinhamento

Se há uma zona de vulnerabilidade na trajetória da poeta, trata-se do seu período de alinhamento com o governo comunista, o qual, aliás, a própria autora repreenderia com severidade anos depois. Talvez esse seja o ponto em que as autoras — que em geral preferem deixar especulações e juízos a cargo de uma polifonia de vozes daqueles que conheceram a poeta — imprimem o seu posicionamento de forma mais explícita. 

Nascida em 1923, no povoado de Kórnik, no oeste da Polônia, Szymborska muda-se com a família para Cracóvia em 1929. Filha de um administrador de terras com inclinações iluministas que desde cedo a estimulou a ler, escrever e conversar, Wislawa frequenta escolas de elite, onde o amor à pátria era exigência maior que a religião. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-45), Cracóvia é ocupada, e a imagem dos judeus “retirando a neve das ruas com aquele distintivo nas mangas” marca o imaginário da jovem poeta.

Os poemas de juventude sobre a ocupação foram, segundo ela, jogados no lixo. A partir da libertação de Cracóvia pelo Exército Vermelho, em 1945, Szymborska começa a publicar. Acusada de hermetismo e falta de engajamento político, passa dois anos sem escrever poemas. Quando volta a publicar, é evidente o alinhamento com o realismo soviético. Ingressa no Partido Operário Unificado e lança o seu primeiro livro em pleno stalinismo. Quando Stálin morre, em 1953, ela lhe dedica um poema. 

Nos capítulos que enfocam a política, Szczęsna e Bikont explicitam o dogmatismo do governo e insinuam que a poesia do período era incipiente e pouco genuína: “A luta pela paz era um estratagema propagandista cujo uso deu lucros excepcionais aos comunistas”. Sobre a célebre habitação comunitária na rua Krupnicza, que abrigava exclusivamente escritores, as biógrafas afirmam sem rodeios que se tratava de “uma tentativa de implementar um controle maior sobre eles pelo governo comunista”.

O poeta Adam Włodek, seu primeiro marido, que atuou por um breve período como informante do Departamento de Segurança do governo, é acusado de traição e deixa o Partido em 1957. Szymborska, no entanto — embora já estivesse afastada das atividades institucionais — só entrega sua carteirinha em 1966, quando um colega é expulso após fazer um discurso contra o obscurantismo. Ela só se manifestaria publicamente sobre os anos de alinhamento com o governo em 1991, ao receber o Prêmio Goethe. A poeta — que já afirmara que devia ao Partido “a completa compreensão da verdade” — passa a lamentar o fato de ter se rendido a uma ideologia organizadora e confessa que, durante aquela que foi “a pior experiência” de sua vida, “estávamos destruindo algo dentro de nós”.

Foi da direita que partiram os maiores ataques ao Nobel de Szymborska, ainda associada à ideologia soviética. Sua autonomia e vivacidade devem ter provocado arrepios naqueles que pretendiam bitolar o conhecimento crítico, a abertura e a diversidade intelectual. As biógrafas celebram os poemas que põem em questão os anos de alinhamento comunista. “Opinião sobre a pornografia” é inaugurado pelo poderoso verso: “Não há devassidão maior que o pensamento”.

Um dos principais méritos da biografia é a atenção dedicada àquilo que pode se chamar de obra burlesca de Szymborska: os limeriques e seus derivados, reunidos na caprichada edição Riminhas para crianças grandes (Âyné, 2018), que também traz fac-símiles dos pitorescos postais que Wislawa produzia com colagens. Os limeriques são poeminhas de cinco versos, rimados no esquema a-a-b-b-a, sendo que o primeiro deve trazer o nome de uma localidade. Seu conteúdo é sempre cômico ou ligeiramente obsceno. 

Praticados incansavelmente pela poeta e seus amigos, os poeminhas eram apenas uma entre as diversas brincadeiras que cultivou — atividades que, segundo a autora, ganhavam força diante do totalitarismo. Em suas tertúlias, Wislawa e sua turma de Cracóvia encenavam peças, faziam batalhas de limeriques, jogavam baralho, passavam trotes por telegrama e se engajavam em sorteios organizados pela poeta, colecionadora de objetos kitsch que, nos jantares que oferecia, eram sorteados em sua casa. 

As brincadeiras que cultivou  ganhavam força diante do totalitarismo

As biógrafas nos convidam a tomar parte nessas brincadeiras e reconhecem que é nesses jogos estéticos que  arte e vida se fundem de forma exemplar. Talvez este seja um dos gestos essenciais a toda biografia: pescar o que pulsa na coincidência entre a criação e a personalidade do biografado. Seu secretário e amigo Rusinek afirmou sobre sua obra: “A oposição entre seriedade e não seriedade é no fundo falsa”.

Assim como não se arriscam na análise poética, as biógrafas também optam por não expor julgamentos acerca da personalidade, das atitudes ou da índole de Szymborska. O fato de a segunda edição do livro ter se servido dos encontros e das mais de mil cartas trocadas entre as autoras e a poeta pode ter tido grande influência sobre o tom empático que marca todo o livro. A adesão ao universo de Wislawa se manifesta, em certos momentos, no estilo do texto: alguns capítulos têm títulos sagazes e poéticos como “Saída da catedral, ou seja, como fazer uma escalada até o início do poema”, outros se encerram de forma alusiva e misteriosa como um poema da autora. 

É admirável o contraponto que as autoras oferecem à imagem de absoluta leveza associada à poeta brincalhona. Por vezes, apontam para o signo do desespero: a face do sofrimento, que por muito tempo a poeta buscou esconder, desponta tanto em uma de suas falas como em poemas da maturidade, sobretudo aqueles que se seguiram à morte de seu grande amor, o escritor Kornel Filipowicz.

Quando se trata de amor, a tendência a certo misticismo é patente. No belo capítulo dedicado a Filipowicz, percebemos que Wislawa insinuava acreditar que o encontro foi obra do destino. Com Filipowicz ela alimentou a admiração pela fauna e flora, dividiu leituras e viagens, assinou cartas, exercitou o gosto por jogos e cunhou apelidos cômicos. “Éramos cavalos que galopam um ao lado do outro”, declarou. O leitor atento perceberá que as biógrafas corroboram a invenção mística — e quase mítica — desse amor quando afirmam: “Filipowicz era sua alma gêmea”.

Descrita como uma “grande racionalista” ou cética, Szymborska acreditava que a escrita da poesia envolve um componente de mistério e uma espécie de colapso momentâneo do racionalismo. Essa incongruência aparece também na fidelidade à astrologia — ela se dizia uma típica canceriana. 

Normal

Quinquilharias, enfim, é uma espécie de viagem labiríntica e dialógica por imagens, afetos, textos e hábitos da grande poeta. Se as autoras não expõem arestas com ela — não fazem juízo, por exemplo, de sua caprichosa ou aristocrática aversão a multidões e à imprensa —, talvez isso não se deva somente à parceria entre as três na reelaboração da biografia, mas também à constatação de que a poeta não era chegada a polêmicas e radicalismos. Chegou a ser descrita como uma “pessoa completamente normal”. 

Aparentemente, não cultivou inimizades nem se prestou a debates públicos acalorados — preferia subscrever cartas em apoio a iniciativas de teor progressista. As biógrafas acabam por incorporar aquela que foi a característica mais associada à presença da poeta — a discrição. Mas também a tenacidade com que Szymborska conduziu sua passagem pela Terra. “Meus poemas são uma respiração natural”, disse, numa das raras ocasiões em que refletiu sobre sua dicção. 

O assédio da imprensa e a exaustão que se seguiram ao Nobel não impediram que Wislawa permanecesse com suas preocupações “menores”. Os postais feitos de colagens seguiram a todo vapor. Em alguns deles, homens de Neanderthal ou macacos, animais de sua predileção, de “olhos tão contagiosos”, recebem prêmios ou fazem perguntas como: “Por que tenho sempre que me explicar?”. 

Quando realizou o sonho de conhecer o vale de Neandertal, na Alemanha, Wislawa Szymborska pediu que fosse fotografada junto à placa que sinaliza a localidade. E sugeriu às biógrafas: a foto “não ficaria mal no fim do livro de vocês”. 

A sugestão, é claro, foi atendida.

Quem escreveu esse texto

Julia de Souza

Poeta, é autora de As durações da casa (7Letras), Gigante vermelha (7Letras) e Covil (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.