Literatura, Memória,

Desertores literários

Aventuras, angústia, melancolia e história marcam as memórias dos dois maiores romancistas de espionagem

01nov2018 | Edição #18 nov.2018

Dois dos maiores best-sellers de romances de espionagem, Frederick Forsyth e John le Carré têm muito em comum. A começar, escrevem com conhecimento de causa: adolescentes durante a Segunda Guerra, foram recrutados como espiões pelo serviço secreto britânico na Guerra Fria.  

Na autobiografia O outsider: minha vida na intriga, Forsyth conta que ingressou na “Firma” aos 38 anos, incumbido de se embrenhar no enclave de Biafra em meio à Guerra Civil Nigeriana (1967-70) — conflito que acompanhava como jornalista — e informar ao serviço secreto de inteligência, o MI6, se as fotos de bebês esqueléticos que circulavam na Europa correspondiam ao que detratores do primeiro-ministro Harold Wilson qualificavam de desastre humanitário.   


Os escritor-espião Forsyth, em 1971 Terence Spencer 

Le Carré morava na Suíça e ainda atendia por David Cornwell quando foi convocado por uma funcionária da embaixada britânica em Berlim. Fugido de um pai tirânico e movido por fervor nacionalista, aceitou, aos dezessete anos, a tarefa de entregar “não sei o quê a não sei quem”. Aos 25, foi formalmente admitido como agente júnior do MI5, divisão de segurança interna do serviço secreto britânico, e encarregado de espionar comunistas; oito anos depois, foi transferido para o MI6 e passou a servir definitivamente como espião na embaixada britânica de Bonn, trajetória relatada em seu livro de memórias, O túnel de pombos

As tramas de espionagem vividas por eles inspiraram dezenas de romances que os tornaram famosos ­— e ricos. Muitos deles, como O dia do chacal, estreia de Forsyth como escritor, e O espião que sabia demais, de Le Carré, foram adaptados para o cinema. 

Foi no outono de suas vidas que Forsyth, 76, e Le Carré, 84, lançaram suas memórias, de tons opostos, diferentemente do que as coincidências biográficas fazem pressupor. Em narrativa linear, o primeiro exibe sua melhor persona: um homem corajoso, intrépido e, como ele diz, “abençoado com uma sorte extraordinária”. Já o último mergulha num passado tão glamoroso quanto sombrio, num encontro melancólico com suas origens.  

A diferença de profundidade no olhar que cada um deles lança sobre sua história não se resume a uma questão de estilo — quesito no qual Le Carré se destaca. Revela, principalmente, disposições distintas dos autores em se mostrar ao público despidos de qualquer heroísmo. Enquanto Forsyth lista seus feitos com o entusiasmo de um avô que narra suas aventuras aos netos, Le Carré encarna David Cornwell e, à medida em que revisita suas memórias, compõe um preâmbulo ao trigésimo terceiro e mais impactante capítulo do livro: “O filho do pai do autor”. 

Tão perto, tão longe

As autobiografias revelam que, na velhice, os dois parecem estar tão distantes um do outro quanto estiveram na infância e juventude. 

Graças a uma família afetuosa e protetora, Forsyth teve acesso à ferramenta que o qualificou para o jornalismo e para a espionagem: a fluência em francês, alemão, espanhol e russo, adquirida em viagens financiadas pelos pais, comerciantes.  

Apaixonado por aviões, credenciou-se como piloto da Força Aérea Real antes de se tornar jornalista, aos 23 anos de idade. Foi correspondente da Reuters em Paris ­— onde cobriu o atentado a Charles de Gaulle em 1962, matéria-prima de O dia do chacal —, e na Berlim Oriental — experiência que inspirou O dossiê Odessa. Em 1965, transferiu-se para a BBC e, em dois anos, estava em meio à guerra na Nigéria. Demitiu-se sob pretexto de receber “ordens” para publicar “uma porção de mentiras” sobre o confronto entre os povos Hauçás e Ibos na ex-colônia britânica. Foi quando aceitou o convite do MI6. 

Enquanto Forsyth exibe sua melhor persona, Le Carré mergulha num passado glamoroso e sombrio

A mocidade de Le Carré, por sua vez, revela mais atribulações. Sua mãe deu à luz numa casa sem eletricidade nem aquecimento e teve o parto apressado pelo marido, temeroso de que credores cruzassem a porta a qualquer momento. Recém-nascido, fez sua primeira viagem no porta-malas de um táxi, junto com peças de presunto contrabandeadas. “Levei muito tempo até conseguir escrever sobre Ronnie, trapaceiro, imaginativo, presidiário ocasional e meu pai.” Tem mais: aos cinco, foi abandonado pela mãe, que reencontrou dezesseis anos depois numa estação ferroviária sem que trocassem um só abraço. 

Os trambiques paternos financiaram sua educação em colégios de elite. Rompido com o pai, estudou literatura e língua alemãs em Berna e em Oxford, disciplinas que ensinou no britânico Eton College enquanto se encarregava de tarefas de inteligência. Depois de passar um período como espião em tempo integral na Alemanha, deixou o serviço secreto quando começou a enriquecer com seu terceiro livro, O espião que sabia demais.   

Oficiais e editores

Le Carré nunca temeu que sua ficção fosse interpretada como algum tipo de vazamento, apesar de frequentemente ser acusado de expor fragilidades do serviço secreto britânico. Ao contrário: atribui sua “instrução em prosa” aos oficiais sêniores do MI5 que, com “alegre pedantismo”, corrigiam seus relatórios: “Nenhum editor nunca foi tão rigoroso”. Acha até que os serviços secretos deveriam ser gratos aos seus “desertores literários”, tendo em conta o “inferno que poderíamos ter causado por outros meios”. 

Ao contrário do colega, que chegou à prosa movido pela devoção à literatura alemã, Forsyth só começou a escrever porque precisou de dinheiro. Em 1970, depois de deixar a África com a cabeça a prêmio, descobriu que também não era bem-vindo em Londres: a fama de propagandista do exército rebelde de Biafra o precedera. Excluído temporariamente dos círculos oficiais, enfrentou dificuldades financeiras.

O primeiro manuscrito de O dia do chacal ficou pronto em 35 dias. Levou mais tempo para encontrar uma editora: no fim, a Hutchinson o surpreendeu com um contrato também para outros dois livros — O dossiê Odessa e Cães de guerra — e um polpudo adiantamento. 

Os títulos das autobiografias, enfim, são fiéis aos estilos dos autores. Outsider, para Forsyth, é atributo do escritor que, como ele, buscaria inspiração na solidão. Já O túnel de pombos remete a um campo de tiro em frente a um cassino em Monte Carlo, onde Le Carré, adolescente, esteve com o pai. O alvo eram pombos que, libertos de armadilhas onde estiveram aprisionados, voavam por túneis escuros, emergindo para a morte.  

Quem escreveu esse texto

Claudia Izique

É coautora de Cidades Nota 10 (Editora de Cultura).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.