Livros e Livres,

Uma viajante antifascista e queer

Livro reúne relatos de Annemarie Schwarzenbach, suíça que cruzou a Europa de carro em 1939 rumo ao Afeganistão

01nov2023 | Edição #75

Afeganistão, 1940. Uma mulher local leva algum tempo para entender se a pessoa estrangeira com quem compartilhava um espaço era um homem ou outra mulher. Ao se convencer, tira o xador, a vestimenta usada por mulheres que deixa apenas o rosto à mostra. A viajante em questão era Annemarie Schwarzenbach e o episódio é narrado em Todos os caminhos estão abertos: viagem ao Afeganistão 1939–1940.


Todos os caminhos estão abertos apresenta para o público brasileiro um pouco do pensamento de Annemarie Schwarzenbach

Jornalista, fotógrafa e escritora, Schwarzenbach (1908-42) foi uma figura proeminente na cultura germânica no período entreguerras, principalmente entre grupos antifascistas. A autora deixou poucos escritos para além de seus textos publicados em jornais ou livros.

Quando morreu, em decorrência de um ferimento na cabeça num acidente de bicicleta, sua mãe queimou diários e cartas remanescentes, fazendo com que haja, até hoje, muita especulação sobre sua vida e poucas respostas concretas.

Com seus escritos pessoais destruídos, é difícil saber como a autora definia seu gênero e sexualidade

Filha de um proeminente e rico casal suíço, obteve o título de doutora em história. Depois, se voltou para a literatura e o jornalismo. Assim como a mãe, Schwarzenbach se sentia atraída por mulheres, mas enquanto a mãe vivia seus casos de maneira discreta e com anuência do marido, a filha vivia sua sexualidade de maneira mais explícita. Aliado ao seu ativismo antifascista, tinha conflitos com a família conservadora e apoiadora de Hitler.

Com seus escritos pessoais destruídos, é difícil saber como a própria autora questionava ou definia seu gênero e sexualidade, assim como pode ser anacrônico usar os conceitos atuais para defini-la. Mas este não é um tema que passa batido pela sua obra — Eine Frau zu sehen (Ver uma mulher, ainda sem publicação no Brasil) é um texto que explora os sentimentos de uma jovem ao se sentir atraída por uma mulher pela primeira vez. Uma narrativa que, apesar de curta, é de uma potência e sensualidade arrebatadoras.

A androginia percebida pela afegã, que não sabia se seria apropriado mostrar o cabelo, também é uma das marcas registradas de Schwarzenbach, notada inclusive por Thomas Mann num de seus diários: “Fosse ela um garoto, seria de uma beleza excepcional”, diz trecho da apresentação do autor de A montanha mágica na edição lançada pela Mundaréu.

Schwarzenbach chegou às páginas dos diários de Mann pela amizade com os filhos dele, os também escritores Klaus e Erika Mann — esta um dos casos de amor não correspondido da suíça. Os Mann se tornaram a família alternativa de Schwarzenbach, que encontrou neles a possibilidade de diálogos intelectuais e antifascistas. Eles também foram os contatos que ajudaram na publicação de seus textos, que alertavam sobre a tensão crescente na Europa e seus perigos, nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Erika apresentou para Schwarzenbach aquilo que se tornaria um dos grandes problemas de sua vida: a morfina.

Entre internações para se recuperar do vício na substância, episódios de depressão e tentativas de suicídio, Schwarzenbach resolve se aventurar de carro da Suíça ao Afeganistão em 1939. E não parte sozinha: ao seu lado, num Ford, estava a também fotógrafa Ella Maillart (mais um suposto relacionamento amoroso), câmeras fotográficas e máquinas de escrever: as duas colocaram o pé na estrada como repórteres e correspondentes.

Todos os caminhos estão abertos é um livro de viagem, mas com um formato um tanto diferente dos diários mais tradicionais. É uma coletânea de artigos publicados na mídia sobre a experiência, a maioria em alemão (traduzidos por Giovane Rodrigues) e alguns publicados em veículos em inglês (traduzidos por Silvia Naschenveng), organizados em ordem cronológica. Com isso, Schwarzenbach tem espaço para explorar temas mais específicos e fazer conexões que escapam da organização diária.

A autora se aproveita disso para fazer várias observações culturais e sociais sobre os países. No caso do Afeganistão, pensa muito sobre como a sociedade parece ser mais limitada para as mulheres. Começa a notar, por exemplo, a ausência de mulheres na vida pública das cidades. A hospitalidade afegã, conhecida e elogiada pela autora, era predominantemente masculina. “Parecíamos estar em um país sem mulheres!”, relata. Quando finalmente conseguem ter contato com um grupo de mulheres, familiares do prefeito de uma das cidades pelas quais passavam, se deparam com uma conversa agradável e multilíngue. E fazem um pequeno ato de resistência: mandam para as novas amigas revistas de moda e moldes de corte e costura da França, todas sem o xador que marcou tanto Schwarzenbach.

Um acerto da edição foi incluir fotografias feitas durante a viagem para ilustrar momentos mencionados no texto. Chama a atenção a imagem de um dos Budas gigantes de Bamiyan, encravados nas pedreiras do Afeganistão, que seriam mais tarde destruídos pelo Talibã. As fotos têm um peso maior quando sabemos que a autora também foi uma fotógrafa importante e registrou, numa fotorreportagem, a segregação racial e de classe nos Estados Unidos.

Estradas abertas

Mesmo com avanços de comportamento em relação ao seu tempo, a narrativa mostra que Schwarzenbach foi em essência uma mulher da primeira metade do século 20. Um leve tom de superioridade cultural europeia pode ser observado em frases pontuais. Além, é claro, de seus privilégios gritantes: do carro comprado pelo pai ao passaporte diplomático, concedido pelo casamento de fachada com um diplomata, que lhe abriu muitos caminhos.

Schwarzenbach é hoje uma figura adotada pela comunidade queer dos países de língua alemã. Sua aparência, postura e relacionamentos encontram identificação com várias pessoas.

Um dos exemplos do interesse mais contemporâneo por sua obra e biografia é o livro Fast eine Liebe (Quase um amor), de Alexandra Lavizzari, que narra o encontro entre Schwarzenbach e a escritora Carson McCullers. As duas foram apresentadas por Erika Mann numa ida da suíça aos Estados Unidos, logo depois da viagem ao Afeganistão. As duas se apaixonaram e trocaram várias cartas.

Quando vemos as imagens de Schwarzenbach, é possível acreditar que ela é uma encarnação já adulta de Micki, personagem de O coração é um caçador solitário, romance que a norte-americana publicou aos 23 anos. Micki, assim como Schwarzenbach, é uma personagem que não consegue se encaixar completamente e se sente distante daqueles que a cercam. Mas a relação com McCullers não durou muito tempo. Schwarzenbach morreu dois anos depois de se conhecerem.

Não é só a aparência da autora ou seus relacionamentos que chamam atenção para sua obra. A própria viagem é um tropo da narrativa queer — a saída do lugar opressor em busca de um lugar de aceitação é um percurso compartilhado por muitas pessoas. A certa altura, afirma:

Partir é libertar-se — ah, a única liberdade que nos resta! —, o que exige de nós apenas uma coragem inabalável e a cada dia renovada…

Schwarzenbach parece estar sempre em fuga e à procura, seja nas viagens ou na morfina. Quando um europeu distante de casa pergunta às duas viajantes por notícias da política na Europa, elas afirmam: “Mas foi justamente da política que fugimos!”. Não era tão fácil assim escapar — “Heil Hitler” era uma expressão que já se espalhava por boa parte do caminho.

O título do livro alude diretamente à estrada e às possibilidades. E o faz com um certo otimismo: estradas abertas significam um mundo sem conflitos, muito diferente daquele que Schwarzenbach deixou para trás. Todos os caminhos estão abertos apresenta para o público brasileiro um pouco do pensamento de uma mulher queer e antifascista na Europa nazista. 

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Gisele Eberspächer

Gisele Eberspächer é jornalista, tradutora e apresentadora do canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?”.

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.