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Para que algo sobreviva

Ao resgatar a história do tio morto pela aids, romance de estreia de Anthony Passeron visita o nascimento do estigma e a luta pela cura

01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85
O escritor francês Anthony Passeron (Jessica Jager/Divulgação)

Em 2016, Paris inaugurou seu primeiro espaço para consumo assistido de drogas. A sala em um hospital é resultado de uma política pública de saúde, implementada depois de comprovar sua eficácia em evitar o consumo abusivo de opioides e a transmissão de doenças, como o HIV. Por esse último motivo, foi celebrada, mas também criticada por parte da população. Nas décadas de 80 e 90, a recomendação do uso de camisinha e seringas descartáveis também contrariava muitos. Enquanto isso, a epidemia da aids se alastrava mais rápido do que a ciência avançava e os governos se dispunham a atender.

Até chegarmos à consciência dos métodos preventivos, o vírus dizimou milhões de pessoas. Tão rápido quanto a epidemia, construiu-se o estigma que tornou a doença uma pecha identitária de grupos já marginalizados. Outra consequência foi o silêncio de vítimas e de familiares enlutados, negando a realidade e enterrando a memória junto aos mortos. Para muitos que sucumbiram à doença, restou um final de vida solitário, em alas hospitalares isoladas e com equipes médicas despreparadas.

É esse um dos silêncios que, desde o início, permeia Os meninos adormecidos, romance de estreia de Anthony Passeron. Com forte cunho testemunhal, o escritor francês remonta a história familiar a partir do passado de Désiré, seu tio paterno, contaminado pelo HIV naquela década de 80, quando o vírus era uma incógnita para a ciência. Passeron anuncia a narrativa como fruto do silêncio, “uma tentativa de fazer com que algo sobreviva”.

A dor é evidente em todos os familiares, em especial o pai de Anthony, irmão mais novo de Désiré. É também silenciosa. Todas as vezes em que perguntava sobre o passado do tio, o narrador colhia do pai traços ressentidos e nada muito além de mandíbulas crispadas. Pudera: Désiré era o primogênito, numa época em que o favoritismo do primeiro filho era senso comum. Designado a seguir os passos e as duras conquistas dos ascendentes, no entanto, o filho com o futuro traçado resolveu se desgarrar.
Saiu do vilarejo próximo a Nice e seguiu para Amsterdã, numa clássica aventura juvenil. Uma viagem da qual parece nunca ter voltado, mesmo depois de ser resgatado pelo caçula, sob pressão dos pais.

Passeron descreve a atuação da doença no corpo e os embates entre cientistas e médicos

Nessa busca de conhecer o passado do tio, o autor encontra algumas peças do seu quebra-cabeça genealógico a partir de velhas fotografias da família, filmes Super 8, depoimentos de poucos conhecidos e uma memória rarefeita, de quando o tio ainda vivia, já lutando contra os sintomas da aids. Com um texto sem rodeios, claramente inspirado em Annie Ernaux, a narrativa vem em capítulos curtos, intercalando de um lado o empenho de cientistas em entender os mecanismos de um vírus desconhecido e, do outro, as frustradas tentativas de uma família entre tantas que tardaram a conhecer a gravidade da epidemia, que não poupou jovens de lugarejos bucólicos.

Aqueles meninos adormecidos estavam com os olhos revirados, a manga da camisa levantada e uma seringa enfiada na dobra do braço. Eram particularmente difíceis de acordar. Os tapas e os baldes de água fria já não eram suficientes. Várias pessoas se reuniam para levá-los até a casa de seus pais, que contavam com a discrição de todos.

A inspiração em Ernaux não está apenas na linguagem e no cunho autobiográfico. O enredo traçado por Passeron revela, além da mítica familiar, um recorte sociológico — como temos visto em outras vozes inspiradas na Nobel, como a de outro conterrâneo, Édouard Louis, ou dos brasileiros José Henrique Bortoluci, de O que é meu (Fósforo, 2023), e Felipe Charbel, de Saia da frente do meu sol (Autêntica, 2023) — este, também um resgate da história ofuscada de um tio.

Todos exemplos de narrativas que trazem a vida local expandida para questões amplas, sem o uso de mensagens cifradas ou subtextos. Eis diante do leitor a realidade árida que impõe desafios para sobrevivermos ao preconceito e outras formas de violência, trazidas a partir de situações que ecoam mundo afora arquivos de casa e de si.

Sentença de morte

Em Os meninos adormecidos, as revelações de Passeron, que é também professor de literautra, vêm aos poucos. Espelham a difícil luta científica para combater a aids, entremeada pelos embates de patentes entre França e Estados Unidos. Impossível não lembrar também do clássico de Hervé Guibert Ao amigo que não me salvou a vida (Todavia, 2023), relatando sua angustiante espera pela cura que não veio, e do recente relato Meu irmão, eu mesmo (Alfaguara, 2022), de João Silvério Trevisan, que se deparou com o teste positivo quando a notícia ainda soava como sentença de morte.

No vilarejo da família Passeron, as descobertaschegam em doses: da difícil aceitação dos pais, desde quando percebem o sumiço de notas do caixa do açougue da família, passando pelo esforço do tio para se livrar do vício, à notícia do exame de sangue e o inevitável destino após os tratamentos. Passeron descreve a atuação da doença no corpo e os embates entre cientistas e médicos cingidos por diferentes valores. Enquanto os primeiros travam uma corrida para entender os exames de pacientes diagnosticados com HIV, um chefe de departamento hospitalar se recusa a “trabalhar para gays e drogados”. Nas ruas, as manifestações dos grupos afetados, em especial lideranças da comunidade LGBTQIA+, como a ACT UP, defendem o que ainda não era óbvio: transparência nas pesquisas e divulgação de práticas preventivas.

As opiniões resistentes ao consumo assistido de drogas de hoje fazem lembrar da época resgatada pelo autor, de quando se construiu o estigma da aids, adiando o conhecimento e a desconstrução de preconceitos. Passeron, que é professor em uma escola profissionalizante, começou a escrever o romance aos 35 anos, após a morte dos avós. A geração dos pais manteve a história arquivada, seguindo o curso comum das famílias de vítimas da doença. Um romance que ajuda a entender não só os primeiros anos da epidemia, mas a recuperar a memória das quase 40 milhões de vidas levadas pelo vírus.

Quem escreveu esse texto

Fred Linardi

É professor e autor de Onze estreias (O Grifo)

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.