Imagem da coletânea 'Homem com homem' (Divulgação)

Livros e Livres,

A arte da sedução 

Coletânea reúne 21 poetas e artistas visuais que exploram nuances e sombras da experiência homoerótica com a marca da insubmissão

01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95

Fundada em 2023, a editora Ercolano tinha a intenção de preencher uma lacuna do campo editorial brasileiro ao editar obras antigas de natureza queer que não foram traduzidas no Brasil, relegadas injustamente a um plano secundário. Essa proposta está sendo cumprida com edições bem cuidadas, trazendo para nós criações de autores e autoras praticamente desconhecidos, como Han Ryner (A menina que não fui) e Jacques d’Adelswärd-Fersen (Lord Lyllian: missas negras).

Ao mesmo tempo, a editora abriu um flanco em seu catálogo para obras brasileiras que tratam de temas ligados às dissidências de sexo e gênero. Este é o caso da sua publicação mais recente, Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI. Organizada por Ricardo Domeneck, a coletânea reúne 138 poemas de 21 poetas nascidos entre 1968 e 2000 — uma geração que, à exceção de Renato Negrão, passou a publicar livros a partir do ano 2000.

Mais do que meras ilustrações, as imagens constituem uma lírica homoerótica paralela

A obra tem prefácio de João Silvério Trevisan (com uma explícita homenagem ao autor homossexual Mário de Andrade), um posfácio de Guilherme de Assis e um conjunto de fotografias de seis artistas visuais (Eugen Bräunig, Lucas Bihler, Marcelo Amorim, Nino Cais, Paul Mecky e o próprio Domeneck). Mais do que meras ilustrações, as imagens constituem uma lírica homoerótica paralela, dialogando com os textos, explorando nuances e sombras, ao mesmo tempo que desvendam explicitudes e intimismo.

Os 21 poetas reunidos estão desigualmente distribuídos nas cinco regiões do país: um na região Centro-Oeste (Matheus Guménin Barreto), dois no Sul (Francisco Mallmann e Wallace Prado), dois no Norte (Eleazar Carrias e Marcos Samuel Costa), três no Nordeste (Marcio Junqueira, Moisés Alves e Leonam Cunha) e treze no Sudeste (Renato Negrão, Ricardo Domeneck, Rafael Mantovani, Régis Mikail, Ismar Tirelli Neto, Maykson Cardoso, Otávio Campos, Rafael Amorim, Thiago Gallego, Victor Squella, Eduardo Valmobida, Caetano Romão e Alan Cardoso da Silva). Esse desequilíbrio regional subjacente à obra não a invalida; porém, certamente poderá mobilizar mais pesquisadores a organizar novas coletâneas de poetas homossexuais das outras quatro regiões do país.

Universo multivariado

A lírica recolhida em Homem com homem habita um universo temático multivariado. As vozes poéticas abordam o corpo, a sexualidade, a construção da subjetividade homossexual, a infância e a adolescência, as religiões, os (des)encantos e (des)encontros amorosos e sexuais, os fetiches, o cotidiano. Os tons adotados também são plurais: humorado, irônico, debochado, sarcástico, intimista, satírico, profano.

Em meio à diversidade, um traço peculiar se destaca: o da insubmissão. Se a própria condição da identidade homossexual é sublinhada por não aceitar se submeter a normas e padrões ditados pela heterossexualidade, as produções artísticas criadas por homossexuais não escapariam a esse papel. Pelo contrário, a arte poética reunida funciona como forma de reler o contexto e propor alternativas de enfrentamento mais abusadas e críticas.

Nesse sentido, Domeneck, em seu poema “X + Y: uma ode” — que associa no título as letras cromossômicas que marcam o sexo biológico de um indivíduo e a releitura irônica de uma composição clássica —, se desculpa com a convenção e pede um olhar diferente para sua lírica:

Perdoe, Sr. Cânone,/ esta minha tosca e parca/ contribuição lírica à safra/ de seus contemporâneos,/ mas não me catalogue/ entre as farsas, sátiras./ Pois não é, consinto, culpa/ das massificações capitalistas/ esta minha ‘attention span’/ pouco renascentista,/ mas desta explosão de cântaros/ plenos de testosterona púbere/ a ir e vir nos espaços públicos.

O poeta e organizador de Homem com homem, Ricardo Domeneck (Paul Mecky/Divulgação)

A insubmissão incontida se espraia entre as vozes poéticas da coletânea e se dirige a alguns interlocutores, entre os quais o discurso sagrado é confrontado pelo profano em diversos poemas. Em “O eleito”, Eleazar Carrias coloca o gozo e a oração no mesmo plano, com o mesmo grau de entrega e reconhecimento, com um gesto simples e compadecido diante da divindade: “Gozo e rezo com a mesma devoção —/ um coração tão grato/ que Deus não resiste e perdoa,/ enternecido/ de eu não sentir/ nenhuma culpa”.

Matheus Guménin Barreto ultrapassa essa fronteira ao corromper um versículo do Evangelho de São João. O título do poema, “João, 6,56”, orienta o leitor a buscar o versículo que valoriza a união íntima com Cristo por meio da comunhão espiritual e o subverte: “Quem come minha fome:/ quem bebe meu sexo e as tardes de meus olhos:/ permanece em mim/ e eu nele”.

Outro poeta que desarticula o sagrado e o rearticula profanamente em uma ambiência cotidiana é Marcos Samuel Costa. Em “Evangelho”, ele retoma pelo nome a referência a dois propagadores do cristianismo, incluindo-os em uma cena corriqueira de envolvimento afetivo-amoroso:

sentados no bar/ Pedro e Paulo pregam/ o evangelho do amor/ percorrem os caminhos/ da dúvida/ mas só contigo, Caio/ Pedro encontrará o amor/ sobre saliva línguas/ histórias vividas/ as memórias que ardem/ no luar de agosto/ e teu sexo quente.

Imagem da coletânea Homem com homem (Divulgação)

São várias as portas e janelas de entrada desse imenso edifício organizado por Domeneck. Mas visivelmente um dos seus pilares é a sedução — do corpo, do contato, do gesto, da carícia, da palavra — como forma de atrair o leitor.

Homem com homem não é uma coletânea de poesia homoerótica solitária. Poemas do amor maldito (Coordenada) foi publicada em 1969 com foco na temática homoerótica dos poemas escolhidos. Outra reunião de poemas homoeróticos, Poesia gay brasileira: antologia (Amarelo Grão) saiu em 2017. Tente entender o que tento dizer: poesia + HIV/aids (Bazar do Tempo, 2018) teve um recorte mais singular ao remeter ao contexto da epidemia de aids e ao estigma associado às homossexualidades. Já em 2022 publicou-se Erótica: versos lésbicos (Tucum). Isso faz acender a legítima expectativa de que a Ercolano se lance à empreitada de publicar Mulher com mulher: poesia lesboerótica brasileira.

Quem escreveu esse texto

Luiz Morando

Pesquisador, é autor de Enverga, mas não quebra: cintura fina em Belo Horizonte (O Sexo da Palavra).

Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “A arte da sedução ”

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