Literatura,

Vendido… e mal pago

O narrador sem freios de Paul Beatty brinca na corda bamba, sem tela de proteção, e rasga a etiqueta do bom comportamento literário

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

“É um negro de primeira linha”, diria certo ministro do nosso STF se fosse depor como testemunha no julgamento “Eu x O Povo dos Estados Unidos”. A frase não chamaria a atenção do leitor de O vendido. Também não deixa claro se é a favor do réu ou contra. É preciso ler e reler para tentar captar a intenção do autor. Talvez nem assim se consiga. Paul Beatty escreve em camadas e deixa que se desfrute seu texto como quiser. 

Você pode ficar irritado e arremessar longe o exemplar, sem querer acompanhar nem mais uma linha desse raciocínio reacionário. Pode rolar de rir com as tiradas de humor negro (ou seria afro-americano?). Pode refletir sobre a descrição crua e desaforada do racismo. Faça o que quiser, ele não está nem aí. Não se preocupa se o leitor é branco, negro, mexicano ou asiático. Beatty causa repulsa porque te faz rir de algo muito grave. Estou rindo disso? Quer dizer que sou mais racista do que eu imaginava? Mas eu sou preto. Quer dizer, nem tão preto assim, tenho cabelo bom!

O vendido tem o espírito de um show de stand-up em que qualquer piada é permitida, por mais escrota que seja. Desde que você seja negro. Ou preto. Ou crioulo. Nossas gradações para definir um afrodescendente param por aí. Não temos uma palavra equivalente ao nigger, que ele usa e abusa sem pedir licença. Não se importa se o leitor enrubesce. Se for branco, claro. Se for preto, não vamos perceber na pele o incômodo. Por dentro, pode ser que ele se irrite. Talvez se acalme ao saber que o autor é um crioulo que nem ele. Aí vem a dúvida. Ele está mesmo fazendo troça do drama de milhões de negros nos Estados Unidos, aqui ou em qualquer lugar? É indiferente ao preconceito, à discriminação? Qual é a desse negão?

Beatty tem a audácia de inventar uma história em que o protagonista, um negro, filho de um militante da causa negra, aceita escravizar um octogenário também negro. Por isso é preso e vai a julgamento. Ali, apresenta os atenuantes. Não houve tráfico. Hominy, um artista de TV aposentado, não foi negociado, é escravo por livre e espontânea vontade. Também não é obrigado a trabalhar, chega e deixa o serviço à hora que bem entende. Faz questão de ser submisso, a ponto de ficar de quatro para se fazer de banquinho, de modo que o “vendido” alcance a sela do seu cavalo. Às vezes, leva umas chibatadas. Sem dramas, admite merecer por ser indolente e preguiçoso. “A verdadeira liberdade é o direito de ser escravo” — comenta Hominy, o ex-Batutinha.

Se não há problemas em possuir um escravo em pleno século 21, o narrador vai mais fundo. Passa a praticar todo tipo de racismo inverso em Dickens, o gueto pobre onde possui uma fazenda precária e produtiva: proíbe brancos de entrar em restaurantes, hospitais, lojas. A Escola de Ensino Fundamental Chaff é uma instituição para negros. Ou para não brancos, já que nativos, asiáticos e latinos povoam a região e ocupam uma zona cinzenta nessa discussão. É como o caso brasileiro do porteiro nordestino (leia-se paraíba) que discrimina o entregador de pizza negro (crioulo). O entregador poderia revidar: “Pra ser racista, meu chapa, precisa ser mais branco que isso daí”.  

Os brancos também terão sua escola exclusiva, a Academia Wheaton. A área está demarcada e os tapumes são ilustrados com o projeto de instalações confortáveis e de alto nível. Detalhe: não há brancos na região. Ainda assim, a ressegregação surte efeito. A criminalidade baixa e as notas dos alunos da Escola Chaff sobem a ponto de alunas brancas desejarem ingressar na instituição. Barradas, são escoltadas pela polícia, como no triste episódio de 1957, quando estudantes negros recorreram à Justiça para assistir às aulas na Little Rock Central High School, em Arkansas. Daquela vez, os alunos brancos xingaram os negros e cuspiram neles. Agora, a população implora por autógrafos das branquinhas. 

Nas lojas, os fregueses se sentem privilegiados ao ver a placa de “Proibida a Entrada de Brancos” na vitrine. O narrador é bem-sucedido na intenção de elevar a autoestima local.

O autor corta as amarras supostamente impostas por movimentos de emancipação do negro. Beatty não hesitaria em pôr um turbante numa personagem branca, assim como deixaria uma banda tocar a marchinha “Nêga do cabelo duro” no Carnaval. Passa ao largo da discussão sobre apropriação cultural. Logo no início da história, o narrador relata os presentes que ganhou no seu afro mitzvah, cerimônia religiosa equivalente ao judaico bat mitzvah

Encantador de crioulos

O pai do “vendido”, conselheiro da comunidade, é um mediador de conflitos. Para o filho, é um “encantador de crioulos”. Todos estão mergulhados no ceticismo. Não se comemora a eleição de um presidente negro. Nada mudou. Obama não acabou com o racismo, nem sequer o aliviou. A certa altura, o “vendido” chega a afirmar que o único lugar da América onde não havia racismo é nas fotos do afropresidente de mãos dadas com a família no gramado da Casa Branca.

Ele inverte os clichês, como o motivo pelo qual sempre tem maconha de primeira: ‘Eu conheço uns branquelos’

Talvez Monteiro Lobato fosse lido livremente. Ou talvez sua obra passasse por uma revisão, como o clássico O grande Gatsby, que se torna O grande Blacksby. Nunca se sabe que rumo a conversa pode tomar. A franqueza e sinceridade do protagonista desconcertam. A menina é miss, apesar de não ser tão bonita, “mas é negra”. Invertem-se ironicamente os clichês, como o motivo por que ele sempre tem maconha de primeira: “Eu conheço uns branquelos”. 

Trata com naturalidade generalizações que a boa educação manda evitar, como o gosto dos afros por melancia e a promiscuidade sexual em famílias pobres. Mexicano também não escapa — e pode ser de qualquer região da América Central ou do Sul. Quantas vezes esse equívoco acontece na vida real? A questão que se coloca é: o que se ganha escamoteando o fato? Muito (ou pouco) se fala da discriminação dos negros. E dos nativos, das mulheres, dos latinos, dos japas? Estão liberados para o bullying?  

A discriminação está entranhada na sociedade, mas é hipocritamente negada. Não percebemos a sua presença, chegamos a acusar desconforto em certas situações, enquanto outras passam despercebidas. É o caso do neurocientista Carl Hart, que veio ao Brasil em 2015 para lançar seu livro e foi barrado na portaria de um hotel paulistano. A notícia causou indignação e furor nas redes sociais. Hart, porém, rebateu de forma contundente. Diminuiu o peso do incidente e centrou fogo em algo visto com naturalidade: era o único negro no auditório. “Vocês deviam ter vergonha disso” — disse à plateia.

Nem sabemos do que nos envergonhar. Canso de ser chamado de moreno, de forma respeitosa. Aliviam minha negritude como forma de elogio. Cheguei a ouvir de um guardinha as desculpas pelo tratamento desrespeitoso: “O senhor não é negro”. Não? Como assim? “O senhor é da Globo…”. 

Não sou mais. Será que agora virei (ou voltei a ser) negro? Pertenço a uma raça nova, catalogada pelo narrador: as celebridades. A ausência de negros nas propagandas de artigos de luxo não é problema. Diz ele: “A única coisa que jamais vi em comerciais de carro não são judeus homossexuais ou negros: são engarrafamentos”. Beatty brinca nessa corda bamba, sem uma tela de proteção. 

Certas passagens não podem ser tiradas do contexto sem prejuízo ao julgamento do autor e do leitor. Não é um livro que se leia tranquilamente no metrô; é preciso manter as páginas quase fechadas aos olhares dos vizinhos, feito uma revista pornográfica. Não se sabe qual seria a reação do companheiro de vagão se, num relance, pescar o trecho em que o narrador descreve com orgulho uma brincadeira que criou para as crianças negras — o túnel da brancura. 

Num lava-jato desativado, a molecada escolhia o tipo de lavagem racial que gostaria de ter: brancura regular, que resultava em maior expectativa de vida; brancura luxo, em que recebia uma advertência em vez de ser levada direto para a cadeia pela polícia; e brancura superluxo, que dava direito às regalias acima, mais “um barco que você nunca usa e um terapeuta que ouve”. Ser branco por uns minutos era uma alegria pros neguinhos. 

Existem várias formas de discutir o racismo. O humor abusado, audacioso e malcriado é uma delas. Mas exige sofisticada interpretação. Ainda me pergunto quantos negros brasileiros lerão esse livro. Estará à venda para brancos? Ou exigirão atestado de afrodescendência?

Quem escreveu esse texto

Helio de La Peña

Ator e humorista, é autor de Vai na bola, Glanderson! (Objetiva) e coautor de Poliana Okimoto (Contexto).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.