Literatura,

Uma vida sem mulheres

Referência de Elena Ferrante, obra-prima de Elsa Morante conta em tom de fábula a formação do menino Arturo

01mar2020 | Edição #31 mar.2020

Quem leu as entrevistas de Elena Ferrante talvez tenha esbarrado no nome de Elsa Morante, apontada como uma de suas principais referências literárias — o próprio pseudônimo de Ferrante teria sido criado em homenagem à autora. A ironia é que estejamos percorrendo o caminho inverso: embora Morante seja uma das escritoras italianas mais importantes do século 20, foi o sucesso internacional de Ferrante que abriu portas para que sua antecessora também pudesse ganhar o mundo.

A ilha de Arturo — memórias de um garoto, obra-prima de Morante, ganhou novas traduções para o inglês (Ann Goldstein) e para o português (Roberta Barni). No Brasil, a versão chega em edição especial da Carambaia, pelo selo Ilimitada. O romance, publicado originalmente em 1957, recebeu o prestigiado Prêmio Strega.

Nascida em Roma no ano de 1912, Elsa Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia e conviveu com grandes nomes da literatura italiana de sua época, como Pier Paolo Pasolini, Italo Calvino, Umberto Saba, Attilio Bertolucci e Natalia Ginzburg. Morreu em 1985, após uma vida marcada pelo talento literário ofuscado pela projeção do marido e por episódios trágicos, como o exílio durante a Segunda Guerra Mundial. Tanto Morante quanto Moravia eram filhos de judeus: ela por parte de mãe, ele por parte de pai.

Davi Pessoa, professor de literatura italiana na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor do posfácio dessa edição, observa que Morante parecia compreender que “não há cura para o sujeito atravessado pelas violências da história”. Para representar os horrores intraduzíveis do pós-guerra, a autora teria optado por narrativas que se aproximavam dos mitos e fábulas.

“Embora os lugares mencionados neste livro existam realmente nos mapas, adverte-se que nestas páginas não se pretendeu de maneira nenhuma apresentar uma descrição documental sobre eles; nelas, tudo — a começar pela geografia — segue o arbítrio da imaginação”. É com essa advertência que o romance tem início, lembrando que, se a obra está ancorada em uma localização geográfica (a ilha de Procida, na baía de Nápoles), também a recria à sua própria maneira.

Atmosfera mítica

Arturo nasce e vive em Procida até a juventude, sem ter qualquer contato com o mundo externo nesse intervalo. Órfão de mãe, o menino tem afetos ambivalentes pelo pai, que teme e admira. A ilha também pode ser interpretada como uma metáfora para o período da infância e da adolescência. O palacete em que vive, antes uma casa de frades, foi herdado de um almafitano rico e misógino: “Ao entrar, tinha-se a ilusão de um passado de bisavós e avós e de antigos segredos femininos”, mas “desde o tempo em que foram erguidas até o ano em que nossa família entrou ali, aquelas paredes nunca haviam visto nenhuma mulher”.

O corte ocorre apenas quando os pais se casam. Em quase três séculos de construção, a mãe de Arturo seria a primeira figura feminina a habitá-lo. Mas sua morte precoce, no parto do filho, acaba por reforçar a lenda e o agouro. Havia de ser “o ódio do proprietário defunto” que tornava o local fatal para as mulheres. Se pai e filho ironizam os rumores, que consideram uma “lorota supersticiosa”, no restante da ilha, a história ganha tamanha autoridade que nenhuma mulher aceita trabalhar no lugar.

Assim, durante a infância, o menino foi cuidado por um rapaz chamado Silvestro. A atmosfera mítica é construída a partir das descrições, como a do jardim que crescia desgovernado, com “plantas de folhas inchadas, espinhosas, às vezes belíssimas e misteriosas”, e dos acontecimentos incomuns: logo após o seu nascimento, o pai teria partido em uma longa viagem, deixando o recém-nascido aos cuidados de Silvestro, que o alimentou com leite de cabra e, mais tarde, também o apresentou aos livros. “Apesar de nossa abastança, vivíamos como selvagens”, comenta o narrador, que acaba tomando gosto pela leitura e se educa sozinho.

Autobiografia afetiva

Anos mais tarde, quando o pai se casa novamente, o garoto solitário, muito enciumado, é forçado a conviver com uma mulher pela primeira vez. Até então, suas principais companhias tinham sido a cachorra Immacolatella, os livros e o mar.

Essa relação com a jovem madrasta, Nunziata, desemboca em uma história de amor aos moldes de Édipo: “Entre todas as mulheres que existiam no mundo, se havia uma mais impossível que qualquer outra para mim, vetada a meu amor por uma proibição suprema, essa mulher era N.”. Ao mesmo tempo, Arturo também é confrontado com uma revelação significativa sobre o pai.

No posfácio, Davi Pessoa observa que a riqueza do romance não está apenas no que revela, mas também no que oculta. Podemos pensar nos múltiplos espelhamentos tecidos na narrativa, o mais óbvio entre a mãe morta e a madrasta. De outro lado, a prisão de Procida pode ser pensada como uma faceta da ilha, que a seu modo é a clausura do narrador.

Ainda que a ideia de estabelecer relações diretas entre a vida e a obra de um autor seja algo controverso, podemos pensar, com cautela, no espelhamento entre Morante e Arturo, presente desde a epígrafe do livro — “Eu, se nele me recordo, bem me parece…” (do Cancioneiro, de Umberto Saba) —, que ecoa um comentário da autora: “Arturo sou eu”, disse, parodiando Gustave Flaubert sobre Emma Bovary.

Talvez o romance de Morante possa ser lido como uma espécie de autobiografia afetiva da autora, que, assim como seu protagonista, encontrou nos livros e na imaginação companhias fiéis. Agora, quem sabe, poderá encontrar também novos leitores. 

Quem escreveu esse texto

Fabiane Secches

É psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.