Literatura,

Uma forma para o desterro

Longe da casa e da língua materna, autora húngara escreve o exílio em francês, com simplicidade engenhosa e vivacidade cênica

20set2024 | Edição #86 out
A escritora húngara Ágota Kristóf (Sandro Campardo/Divulgação)

Em 1946, nove anos depois de escolher a França como morada, o irlandês Samuel Beckett adotou o francês como língua de criação e empreendeu uma guinada estilística: decidiu ocupar-se da falha, do fracasso, da impotência humana. A húngara Ágota Kristóf também deixou a língua materna para escrever em francês, mas, ao contrário de Beckett, o desvio foi imposto e sem volta. Causas e desdobramentos do exílio linguístico de Kristóf impulsionam o seu brevíssimo A analfabeta: um relato autobiográfico, de 2004, agora traduzido e publicado no Brasil pela Nós.

A narradora sem nome, mas que se confunde com a autora, afirma que não foi ela que escolheu a língua francesa: “Ela me foi imposta pelo destino, pelo acaso, pelas circunstâncias”. As agruras de que fala advêm não só da Segunda Guerra, que eclodiu quando a narradora tinha apenas quatro anos, mas principalmente da dominação soviética na Hungria nos anos 50. O “fio prateado da infância” é rompido por estrangeiros que restringem o contato dela com a família e a língua materna, confinando-a numa escola onde o ensino do russo é obrigatório.

Em sua cabeça de menina, só se existe em húngaro: “Os objetos, as coisas, os sentimentos, as cores, os sonhos, as letras, os livros, os jornais, eram aquela língua.” Aos nove anos, quando muda do vilarejo natal para uma cidade na fronteira com a Áustria, descobre, porém, haver outra língua, o alemão, considerada inimiga pelos húngaros. Um ano depois, com a chegada dos soviéticos, conhece outra língua inimiga. Considerando sua premissa língua-existência, a menina descobre haver mundos para além do seu, mundos não só cujas palavras, mas cujas ações, de tão hostis, não consegue entender.

Como o drama real do exílio se sobressai, a escrita tende a ser vista apenas sob o viés da analfabeta

E quanto ao francês? É a língua de Lausanne, cidade suíça aonde ela, aos 21 anos, seu marido e a filha de quatro meses chegaram na condição de refugiados. É a língua do exílio, completamente desconhecida na chegada e que, mesmo após trinta anos, não será dominada por ela, nem na fala nem na escrita. É outra língua inimiga, justifica, por “estar matando minha língua materna”. Ainda assim, é a língua da escrita literária. Por quê?

Deixei na Hungria o meu diário com a escrita secreta, assim como meus primeiros poemas. Deixei lá meus irmãos, meus pais, sem avisá-los, sem me despedir deles, sem querer dizer até logo. Mas principalmente, naquele dia de final de novembro de 1956, perdi definitivamente meu pertencimento a um povo.

O contexto impunha levar pouco, é verdade. Carregou apenas duas bolsas, uma com itens para a filha bebê, outra com dicionários. Mas não teria lugar ao menos para alguns de seus textos em húngaro? Se o que deixou para trás foi sobretudo o “pertencimento a um povo”, é lícito inferir que ali também houve uma cisão de ordem literária. A ela, decidida a escrever a todo custo, foram impostos ao mesmo tempo o desterro e uma literatura desterrada, portanto o húngaro como língua de ofício era um pertence a ser deixado. Exilada numa cidade francófona, só restou escrever o desterro na mesma língua em que foi preciso renascer.

Estilo apurado

Vocabulário restrito, repetições e frases breves com raras inversões e conjunções configuram a simplicidade estilística de uma expatriada que confessadamente não domina e jamais dominará o francês como escritores nativos. Como o drama real do exílio se sobressai, a escrita tende a ser vista apenas sob esse viés. Mas quando se leva em conta que a narradora já escrevia e encenava cenas teatrais na infância e, além de prosadora, tornou-se dramaturga, outro fator relevante expande a análise. Na dramaturgia, o texto está a serviço da cena. Não se esperam dele refinamento nem rodeios, e sim clareza, detalhe, precisão para a montagem da cena. Quando se analisa A analfabeta sob essa perspectiva, nota-se uma narração com forte pendor dramático, como o trecho da travessia da Áustria a caminho da Suíça:

Caminhamos pela floresta. Por muito tempo. Tempo demais. Os galhos ferem nossos rostos, caímos nos buracos, folhas mortas nos encharcam os sapatos, torcemos os tornozelos nas raízes. […] Temos a impressão de andar em círculos. Uma criança diz:

— Estou com medo. Quero voltar para casa. Quero deitar na minha cama.

Outra criança chora. Uma mulher diz:

— Estamos perdidos.

Rubricas são impessoais. Contudo, se o trecho estivesse não em primeira, mas em terceira pessoa, as passagens sem diálogos seriam típicas rubricas. Graças à escrita telegráfica e ao emprego do tempo presente, quem tomasse o texto nas mãos teria o essencial para imaginar a cena e dar vida a ela num palco. De volta ao trecho original depois desse exercício de mudança de foco narrativo, fica mais claro que a primeira pessoa, eixo básico da autobiografia, tem uma dicção marcadamente cênica. O arranjo temporal salienta ainda mais essa mistura de gêneros. Na medida em que Kristóf abdica do passado — tempo básico do narrar — em favor do presente, o interlocutor muda de lugar, como se de leitor passasse a espectador de uma história de vida. Cabe supor que, embora tenha abandonado o idioma dos primeiros escritos, a autora levou algo do estilo teatral para o exílio.

Além da função cênica, o emprego do presente pode sugerir outros efeitos. Um deles é trazer à tona a condição da memória enquanto ato do presente, ou seja, só se lembra no agora, de modo que os eventos pretéritos estão sempre sujeitos à distorção, ainda que involuntária, do olhar atual. Outro efeito possível, embora pontual, é a representação da condição de expatriada, realidade adversa que perdura com o “problema das outras línguas”. Ele é sugerido no capítulo “Língua materna e línguas inimigas”, cuja frase de abertura tem a dicção e a temporalidade do mito: “No começo, só havia uma língua materna”. A narração segue no passado por duas páginas até a descrição do ensino obrigatório do russo na tal escola-prisão, momento em que a narradora vivencia o revés da dominação estrangeira.

A analfabeta é um livro de leitura fácil, nem por isso pouco engenhoso. Não é só em virtude dos acontecimentos que a matéria autobiográfica salta aos olhos. Há muito esmero em jogo, a começar justamente pela simplicidade da linguagem. Contrária à impressão de ligeireza, a linguagem se prova técnica pensada e certeira que, entre outros efeitos, dá vivacidade cênica ao direcionar o holofote para o entrecho. Por maior que seja a força de um relato, ela não garante boa literatura.

Quem escreveu esse texto

Wilker Sousa

Jornalista, é mestre e doutorando em teoria literária pela Universidade de São Paulo. É autor de As digitais das sombras (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.

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