Literatura,

Salve, menine dengue!

Autor argentino acompanha a saga de vingança de uma criatura mutante num mundo pós-colapso climático

27mar2024 • Atualizado em: 01ago2024
O escritor argentino Michel Nieva [Agustina Battezzati/Divulgação]

Com seu Dengue boy, Michel Nieva nos leva para o ano de 2272, nos confins mais austrais da América do Sul. Por onde vamos não sabemos, mas a viagem promete. Uma viagem por um mundo imundo e louco, talvez.

Foi em 2197 que os gelos antárticos derreteram todos de uma vez, e quando o mar subiu em níveis jamais vistos, a Patagônia, região outrora famosa por suas florestas, lagos e geleiras, transformou-se numa trilha desconexa de pequenas ilhotas em chamas.

O narrador é aquele que tudo sabe desse mundo pós-colapso climático, como se tivesse acompanhado mais de duzentos anos de notícias e estudos científicos e pudesse, agora, constatar as mais terríveis previsões.

Logo no início, somos apresentados ao mapa de uma Argentina esfacelada, praticamente coberta pelas águas, com migalhas de território flutuando no oceano. Ali situa-se o Caribe Pampiano, ácido sinal de uma nova geografia mundial. Mais um zoom e estamos numa das praias públicas mais sujas e degradadas de Victorica, em que o menino dengue e outras crianças são despejadas pelos pais trabalhadores numa colônia de férias.

Vejamos: não só o clima colapsou, mas também a economia — e o que podemos ainda vislumbrar como civilização. Grandes corporações enriquecem graças a novas pandemias e agentes virofinanceiros se dedicam a identificar vírus desconhecidos, monetizando seus efeitos. Um planeta devastado, em que se acirram as diferenças sociais e a gana do capital se mostra ainda mais inclemente. Filhos da classe trabalhadora, como o menino dengue, estão entregues à própria sorte.

Na segunda metade do livro, migraremos, nas asas do mosquito, até o Caribe Antártico, “um dos poucos abrigos da grande sauna do mundo”, em que multinacionais constroem e recriam paisagens desaparecidas, reunindo espécies vegetais e animais já extintas, em mirabolantes manipulações genéticas e empreendimentos megalomaníacos. Por ali navega o Grande Cruzeiro do Inverno, uma impressionante criação imagética, um dos suprassumos desse autor.

Outras colunas de

Gabriela Aguerre

Mas comecemos pela colônia de férias, onde o dengue boy, pobrezinho, sofre bullying num crescendo insuportável e ouve os piores rumores a respeito de sua origem — uma espécie mutante teria violentado e emprenhado a mãe? Um inseto gigante teria contaminado o pai, que ao ver o recém-nascido sinistro abandonou filho e mulher para sempre? Perseguiremos esse mistério por grande parte do livro, em várias camadas de um enredo vertiginoso que nos mostra, no fundo, que o menino dengue buscava vingar a mãe, “cansada demais, oprimida pela violência recebida dos patrões” e que depois se vê protagonizando uma cruzada maior. Um adolescente que vai ganhando consciência de classe, do mundo e de seu lugar no mundo — e que, ainda mais no fundo, só queria ser amado pela progenitora. Quem nunca?

Deu ruim

Já no começo intuímos que 1. vai dar ruim e 2. já deu ruim. Tentando se misturar às atividades entre os meninos da colônia — incluindo ali um ritual de masturbação coletiva em que se descobre menina, e não menino —, ela (agora) se enche de fúria e parte para o ataque. Aniquila não só os coleguinhas, dentre eles Dulce, personagem que ajuda a desvelar grandes enigmas da trama, como também os corretores da Bolsa de Valores do Pampa, promovendo o grande crash de 72 — e ainda aparece muito o que destruir, página após página. Precisa ter estômago para ler como a menina dengue destripa barrigas, mete o bico em arrombados ventres, nos olhos, nas orelhas. Nieva não tem dó.

Ele narra o monstruoso, mas com toques de humor e certo lirismo, criando uma empatia desconcertante em quem acompanha esse protagonista bizarro. “Pobre menino dengue”, diz. Meio humano, meio inseto, o dengue boy, agora menina dengue, deixa no chinelo qualquer mosca de Cronenberg ou outras criaturas da ficção de terror. Mas por que, caro autor, logo o mosquito da dengue? A gente aqui olhando para o minúsculo inseto como ameaça gigante e decidindo se fecha o livro ou segue lendo. Seguimos.

No romance temos um mosquito muito autoconsciente. Resultado ele/ela mesmo de mutações, a criatura vai atravessando transformações internas. A menina dengue descobre o sentimento de maternagem dos milhares de ovinhos que depositou e que virão a compôr um exército de novos mosquitos — e se nomeia “a mamãe dengue”. Mais um pouco e se entrega a reflexões niilistas e passa a se chamar “o nada dengue”. Para então virar “a envenenada dengue”, quando sucumbe (morre? não morre?) a uma borrifada de inseticida — e logo voltará a sua condição original, de menina dengue, mas dentro de um metaverso, quando assassina seu criador, resolvendo todos os problemas do mundo. Mas, oh, ilusão (evocando aqui o próprio narrador e as exclamações condescendentes e irônicas), o mundo em si não se resolve, é em si um dilema irresolvível. “Horror sinistro das mais amargas verdades!”

O protagonista deixa no chinelo qualquer mosca de Cronenberg ou outras criaturas da ficção de terror

Dulce, o primeiro personagem assassinado, vai protagonizar uma história que corre em paralelo e se une a tudo no final. Em flashback, acompanhamos o “exemplar trabalhador infantil” (que ajuda o irmão mais velho, contrabandista de fabulosas drogas sintéticas e de ovejín, uma esponja viva e amorfa de carne usada para satisfazer perversos prazeres), numa realidade virtual apresentada com maestria. Nieva nos faz esquecer da transição entre a narrativa fictícia e mais fictícia ainda, e entramos no metaverso com naturalidade: com Dulce estamos no século 19, num videogame, em que índigenas e cristãos se assassinam ao bel prazer de quem joga. Oportunidade de Nieva deitar e rolar na literatura gauchesca, parecendo salivar com uma visão crua e áspera, que nos faz sentir na pele a posição dos oprimidos (e ver como se regozijam os jogadores na posição dos opressores) e ainda raivar contra cristãos, colonizadores, ingleses, usurpadores, a turma toda.

Complicado explicar como essas realidades se encontram num livro impossível de resumir: mas, acredite, tudo se amarra numa revelação catártica sobre as injustiças e a imbecilidade, que só se acirram neste e no mundo futuro. A cruzada da menina dengue é de reparação e vingança. As páginas de Dengue boy parecem uma forma possível de dar vestes à descoberta de uma grande verdade cósmica — num livro que dialoga com uma tradição cronopiana de descrever com naturalidade as mais estranhas criaturas ou com Borges, com quem o narrador conversa abertamente: o Aleph não existe! E mesmo assim seguimos.

Quem escreveu esse texto

Gabriela Aguerre

É jornalista e autora de O quarto branco (Todavia, 2019).

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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