A escritora camaronesa Leónora Miano (Elom/Divulgação)

Literatura,

Possibilidades de outros futuros

Leónora Miano cria uma ‘afrotopia’ sobre a construção de uma sociedade mais justa, que incorpora inovações sem abandonar as tradições

17jan2025

Vermelha imperatriz, de Léonora Miano, é um livro extraordinário, em muitos sentidos da palavra. A começar pela originalidade da abordagem do continente africano, que é apresentado por meio de uma possibilidade de futuro: parte dele foi rebatizado de Katiopa, e este, unificado após a segunda Chimurenga, luta que libertou de fato aquela parte do continente da dominação colonial de países europeus e implantou um sistema de governo original. 

Para a nova realidade, a autora criou um novo vocabulário, com o qual o leitor vai aos poucos se familiarizando. Algumas palavras são explicadas em um glossário, outras ganham sentido na própria narrativa, que, hermética no início, vai se tornando natural à medida que são desenvolvidos os cenários, personagens, situações, tramas e interpretações da realidade exposta. 

Apesar de “afrofuturismo” ser uma das palavras-chave escolhidas para identificar o livro na ficha catalográfica, não se trata de uma produção desse gênero, com o qual a autora, aliás, não se identifica, como afirma em entrevista a Adriana Ferreira Silva publicada na edição #87 da Quatro Cinco Um

O afrofuturismo é um movimento de viés norte-americano que explora estéticas e enredos típicos de heróis em quadrinhos gestados naquele universo cultural e simbólico. O romance de Miano é fruto de uma maneira africana, ou melhor, centro-africana, de entender o mundo e as relações das pessoas mantidas entre si mesmas e seu entorno, natural e espiritual, aproximando-se da ideia de um desenvolvimento endógeno, ou de uma “afrotopia”. 

Complexidades

Para pessoas pouco familiarizadas com sistemas africanos de pensamento e de organização social, com a geografia do continente e com o processo de colonização e descolonização, talvez seja difícil perceber a complexidade do romance, que se passa no ano de 2124 e é uma reflexão sobre o futuro possível de sociedades africanas que têm o desafio de conciliar tradições locais com as aquisições resultantes do colonialismo e da ocidentalização dele decorrente.

Boya, a mulher vermelha que dá título ao romance, tem um nome que não é de nenhuma cultura africana e sim de um povo da Antiguidade. Também sua cor não é típica de pessoas nascidas no continente — ela tem um quê de albina, o que lhe dá um tom de pele acobreado. Professora universitária e pesquisadora, estuda os fulasi, descendentes de antigos colonizadores, e pertence a uma fraternidade feminina que une ritos tradicionais com inovações contemporâneas, reconhecendo a liberdade das mulheres, inclusive no que diz respeito à sua sexualidade. Já o mokozi do Katiopa unificado, o primeiro chefe de Estado da unidade política formada depois da segunda luta de libertação (a Chimurenga), conquistada pela Aliança, que há apenas cinco anos conseguiu suplantar diferenças internas e constituir um novo governo, tem como nome Ilunga, que remete a Chibinda Ilunga, o fundador mítico do império Lunda, localizado no centro da África, “entre o oceano e o grande Lualaba”. A paixão de Ilunga por Boya, a mulher vermelha que chama sua atenção e da qual consegue se aproximar, é plenamente correspondida quando o encontro dos dois acontece, propiciado pelas vantagens que seu lugar de poder lhe dá.

A narrativa permite conhecer melhor essa socidade, que busca ser a matriz de algo único

Alternando questões ligadas aos problemas com a consolidação de um jovem estado e a relação amorosa entre Boya e Ilunga, a autora vai lentamente introduzindo ao leitor as personagens, que ganham densidade conforme a trama se desenvolve. A narrativa é perpassada por explicações que permitem conhecer cada vez melhor essa sociedade que busca ser a matriz de algo único ao retomar a independência perdida por causa da dominação de países de Pongo (o mundo europeu), em especial dos fulasi (franceses) e dos ingrisi (ingleses).

A atuação nociva desses países ultrapassa a dominação exercida sobre o continente, como indica o mar avançando terra adentro, enquanto Katiopa faz uso das avançadas tecnologias disponíveis, mas com fontes de energia limpa. 

Esfera espiritual

Além de propor formas de existência menos predadoras do meio ambiente, a singularidade do seu governo reside no resgate da participação decisiva nos negócios de Estado dos anciãos mais reverenciados, com destaque para a sangoma, aquela que detém os saberes curativos e faz a intermediação com a esfera dos ancestrais, conectando os seres humanos e os entes espirituais. A importância dessa esfera, não acessível a todos e alcançada por uma viagem espiritual, fica evidente não só pelo seu lugar de destaque na tomada das decisões políticas, como também na confirmação da seriedade da relação mantida pelo par amoroso, pois cada um leva o parceiro escolhido para conhecer seus ancestrais, habitantes do mundo espiritual. Como em qualquer sociedade africana guiada pelos valores tradicionais, é desse mundo espiritual que vem a proteção dos vivos, a legitimação das posições de mando e a orientação quanto às decisões a serem tomadas. A Aliança, que conquistou o poder há apenas cinco anos, busca “inventar um futuro sem negar completamente o passado”.

Mas nem tudo é harmonia no Katiopa unificado. As desavenças surgem em relação a como lidar com os Sinistrados: os grupos de fulasi que ali permaneceram após a segunda Chimurenga, vivendo como marginalizados nas periferias pobres, falando sua própria língua, mantendo seus hábitos e sendo vistos como ameaça constante ao sucesso da jovem confederação, que após o fechamento inicial pretende se abrir para o exterior e servir de exemplo com o sucesso de suas opções fundadas em suas tradições. 

O kalala, responsável pela segurança interna e que foi voto vencido no debate junto ao conselho quando defendeu a expulsão de todos os fulasi — assim como perdeu para Ilunga quando o mokozi de Katiopia foi escolhido —, recorre aos meios escusos típicos dos sistemas de espionagem para tentar eliminar Boya e derrubar Ilunga de sua posição de mando. A chance para isso é dada pela decisão tomada pelo próprio mokozi, influenciado pela mulher vermelha, de determinar que os fulasi deveriam amar ou deixar Katiopia, ou seja, deveriam se integrar aos katiopianos se quisessem ali permanecer. 

Essa tensão central sintetiza o cerne do romance: como conciliar as tradições próprias das culturas nativas com o que foi introduzido pelos colonizadores estrangeiros de forma a trilhar o caminho mais benéfico possível para o continente. A cor vermelha da personagem principal — que é africana mas tem um nome estranho às culturas nativas, estuda comunidades remanescentes do colonizador e pertence a uma sociedade iniciática de mulheres — é expressão da realidade única e particular que ali está sendo gestada, mas que se assenta em exemplos do passado. 

Identidade genuína

Em Mbanza, a kitenda (capital), a principal avenida se chama Menelik II, herói da resistência à tentativa de invasão da Etiópia pelos italianos; o rei Amador, que chefiou fugitivos aquilombados no centro da ilha de São Tomé, dá nome a um boulevard. O passado valorizado é o verdadeiramente africano, diferente da visão construída pelo olhar estrangeiro, como é frisado por Boya quando ela faz questão de lembrar que as ahosi, guerreiras do reino Fon, tornaram-se personagens míticas por um ultrapassado “estrangeirismo das concepções feministas”, quando de fato eram mulheres que não eram donas de si e se tornaram guerreiras não por escolha própria, mas como condição de sua sobrevivência. A identidade vista como genuína incorpora coisas do antigo dominador, mas é construída a partir dos próprios katiopianos.

Além de um romance habilmente construído por meio de uma narrativa bela e original, transposta com eficácia para o português na tradução de Carolina Selvatici e Emilie Audigier, Vermelha imperatriz é uma reflexão sobre os impasses da África contemporânea. Sua história imagina um futuro que almeja a construção de uma sociedade justa, alcançada por meio da fidelidade e da reinvenção, da coerência de uma maneira tradicional de existir associada à incorporação de contribuições gestadas em outras sociedades.

Quem escreveu esse texto

Marina de Mello e Souza

Escreveu Reis negros no Brasil escravista (Humanitas).