Literatura,
Onde estão elas?
Em ensaio denso, Hélène Cixous descreve sua busca por interlocutoras e conclama as mulheres a escrever e participar de um processo de criação coletivo
01mar2022 | Edição #55“Bastava, reza a lenda, que Medusa mostrasse todas as suas línguas para que os homens saíssem correndo: eles confundiam essas línguas com serpentes. Precisava vê-los fugir, tapando os ouvidos, com as pernas e também outras partes do corpo bambas, ofegantes, já sentindo a mordida. Eu até achava essa cena engraçada. Porém, mais tarde, o Homem voltava de costas e, de um golpe forte, com sua espada ereta, sem nem mesmo olhar o que fazia, cortava a cabeça dessa infeliz. Fim do mito.”
É assim que a autora Hélène Cixous inicia a apresentação, escrita em 2010, que antecede a republicação do seu ensaio “O riso da Medusa”, de 1975. Em seguida, emenda: “Ao final, cansei-me dessas decapitações”. Conta, então, que se empenhou numa busca para encontrar interlocutoras, mulheres potentes, alegres, livres, mas “essas belezas de vida que eu encontrava na literatura, raras e esplêndidas, não se encontravam em qualquer canto da realidade”. Cixous perguntava, então, ao amigo Jacques Derrida: “Onde estão elas?”, ao que ele respondia: “Se elas existem no texto, existirão na realidade, ‘um dia desses’. ‘Um dia desses’, quando é?”.
Notemos que Derrida não diz que se essas mulheres existem na literatura, elas também existem na vida. Como se bastasse procurar com um pouco mais de empenho. Não. Ele diz: existirão, no futuro. Reforçando o efeito de criação de realidade a partir da escrita e da imaginação, da projeção, das liberdades tomadas no sonho e nas ficções, e concretizadas nas palavras. Se precisasse fazer um resumo do ensaio de Cixous, que já é tão breve, tão denso, tão precioso, talvez eu escolhesse este meu parágrafo como síntese.
Mas há outro elemento que grita em seu texto: o desejo de que essa escrita, esse processo de criação, não se dê de forma isolada e solitária, o que, para as mulheres, politicamente também é uma desvantagem e tanto. Ela nos convida a que ouçamos umas às outras, a nos juntarmos, a trocar, a abrir espaço umas para as outras. Em respeito à sua convocação coletiva, pensei que não faria sentido escrever esta resenha de modo tradicional, mas sim, ao contrário, propor uma espécie de ensaio, de colcha de retalhos, em que diferentes leitoras críticas pudessem expressar minimamente o impacto que a obra de Cixous teve sobre elas.
Com isso, claro, algumas coisas importantes perdem espaço: só a biografia de Cixous, que nasceu em Orã, na Argélia, em 1937, indo viver e estudar na França em 1955, merecia um texto à parte, com checagem rigorosa. Sua vida é mais fascinante do que boa parte das obras de ficção. Ela não apenas conheceu, mas conviveu de perto com, influenciou e foi influenciada por muitos nomes impressionantes. Alguns vão aparecer aqui e ali, ao longo deste ensaio.
Mas, ainda assim, com todas as perdas, penso que o formato deste texto está mais afinado com a essência do livro O riso da Medusa. Aqui, a página está iluminada pela participação de convidadas, reunidas numa constelação. Agradeço a cada uma que aceitou participar desta conversa, quebrando as paredes de nossos monólogos, colocando nossas ideias para que possam se contagiar mutuamente nas impressões de quem nos lê.
Uma cabeça, muitas línguas
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A psicanalista Amanda Mont’Alvão Veloso conta que foi a partir desta nova tradução que conheceu esse trabalho de Cixous e comenta que a autora “enlaça ao nos convocar para uma ‘escrita feminina’. Não a qualquer encadeamento de palavras, mas a uma escrita que é enunciação, emancipação e subjetivação. Pois escrevemos pela insistência da existência, para que rastros inscrevam percursos sobre caminhos então obstruídos e censurados. ‘Vamos mostrar a eles nossos sextos [neologismo que une sexo e texto]!’, diz ela, e seu convite faz emergir manifestos daquilo que antes não podia aparecer a não ser pela latência, pelas irrupções, pelos sintomas. Marcas que, quando escutadas, lidas, olhadas, assinalam presenças. Cixous, de olhar e escuta sensíveis, bem sabe que ‘a’ mulher não existe, como seu amigo Jacques Lacan advertiu. Avessas a ser enclausuradas em um único significante, elas insistem em suas infinitas escrituras”.
Talvez seja interessante considerar que esse comentário venha de uma psicanalista que também é autora de ensaios, resenhas e outros textos. Uma psicanalista, como tantas, que escreve. Veloso assina o trabalho Inconsistências no dizer: contradição e psicanálise (2020), dissertação de mestrado realizado em linguística aplicada e estudos da linguagem, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — instituição na qual agora é doutoranda. Seu trabalho como pesquisadora, em muitos aspectos, poderia ajudar a iluminar o texto de Cixous que estamos tentando ler e analisar aqui, em conjunto.
Também para a psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo, diretora do Instituto Gerar, colunista da Folha de S.Paulo e autora de diversos textos e livros, Cixous “exorta as mulheres a sustentar o lugar da ‘escrita feminina’ no mundo, embora não confunda essa produção com a anatomia ou gênero de quem escreve. Aliás, ao contrário de feministas que discriminam homens e a masculinidade falocêntrica, a autora faz questão de ressaltar as parcerias intelectuais que manteve com grandes autores (Foucault, Derrida, Lacan). Ela nos lembra que, ao denominar o mundo interno das mulheres de ‘continente negro’, Sigmund Freud as colocou, assim como as pessoas negras, no lugar do estranho, de depositário de tudo o que em nós tememos reconhecer”. Para Iaconelli, a nova tradução de O riso da Medusa para o português “é tão tardia quanto bem-vinda”.
Já a editora e pesquisadora de literatura Mayara Freitas, formada em estudos literários na Universidade Estadual de Campinas e autora de uma dissertação sobre os diários de juventude de Virginia Woolf, trabalho realizado na Universidade de São Paulo, associa o texto de Cixous ao ensaio “Profissões para mulheres”, de Woolf, em que a escritora inglesa dizia: “Seja afável, seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas […]. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E, principalmente, seja pura”. “Assim aconselha o ‘anjo do lar’, figura do ensaio de Woolf, autora que influencia o trabalho de Hélène Cixous”, como afirma Freitas.
Hélène Cixous nos convida a que ouçamos umas às outras, a nos juntarmos, a trocar, a abrir espaço umas para as outras
“Talvez por isso O riso da Medusa possa remeter, em certa medida, à luta constante que uma mulher trava pelo direito de escrever o que pensa, o que seu corpo sente, sem amarras sociais, justamente como propõe Woolf. Só quando unidas as liberdades da mente e do corpo é que deixam de existir obstáculos que cerceiam a ‘escrita feminina’. Não reduzindo essa escrita a temáticas exclusivamente ditas ‘femininas’, nem direcionadas exclusivamente a mulheres ou a obras cujas vozes sejam imediatamente relacionadas a um ‘eu’ feminino. Pelo contrário, a ‘escrita feminina’ vem sem voz pré-demarcada, podendo ser tudo, falar sobre tudo.”
Marco
Emanuela Siqueira, tradutora literária, crítica cultural e pesquisadora de estudos feministas ligados à escrita e à tradução, é mestre e doutoranda em letras pela Universidade Federal do Paraná e lembra que, apesar de “O riso da Medusa” ser um texto que circula há algumas décadas no meio acadêmico — seja na versão em inglês, na revista Signs (1976), ou na coletânea esgotada Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010), de 2017 —, esta nova tradução feita por Natália Guerellus e Raísa França Bastos, diretamente do francês (algo que Cixous preza bastante), é um marco importante “precisamente pelo que diz a autora no início do ensaio: ‘pelo que ela fará’.Seja nas maneiras como o texto afeta (chamando e colocando em movimento) aquelas que escrevem, que pesquisam e que leem, ou na prática da tradução, feita a quatro mãos, em um processo de diálogo, rejeitando a velha ideia da solidão de quem traduz. Nenhuma Medusa a mais perderá a cabeça por saber tantas línguas, pois, como afirma Cixous, não nos faltaremos na via da linguagem”.
‘No meio de todos, eu procurava minhas pares, mulheres com olhos e ouvidos na ponta da língua’, escreve a autora
“No meio de todos, eu procurava minhas pares, mulheres com olhos e ouvidos na ponta da língua, e corpos que falassem e rissem. Não havia tantas assim pelo mundo”, escreve Cixous. A psicanalista Thaís Marques, diretora científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto e autora de artigos, ensaios e contos, entre outros textos, destaca esse trecho para pensar também na relação psicanalítica: “A relação analítica deve ser uma troca que possibilite a criação de ficções e imaginações, para que algo vivo, com frescor, tenha voz e possa falar em linguagens de emoção, não apenas em teorias. A experiência analítica se assemelha à descrição que Cixous fez sobre ‘as mulheres potentes, férteis e belas, que não se encontram em qualquer canto: um jardim no qual as línguas soltas se banham em fontes e dividem seus segredos’. Sim, dividem seus segredos! Quem analisa faz parte do campo de observação que observa, e no qual as linguagens de emoção são essenciais. A psicanálise deve estar a serviço da vida e do encontro, senão, não serve para quase nada”.
Hélène Cixous demorou para encontrar pares entre as mulheres. Já eu tenho tido mais sorte na minha jornada. Por isso, queridas companheiras, muito obrigada.
Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.
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OUTUBRO, 2024