Literatura,
O sobrevivente da Cidade de Deus
Relato de Ailton Batata sobre os erros do filme mostra que a ficção emerge das lacunas do real
08nov2018 | Edição #2 jun.2017Vinte anos separam o lançamento da primeira edição daquele Cidade de Deus, de Paulo Lins, deste Cidade de Deus: a história de Ailton Batata, o sobrevivente, de Alba Zaluar e Luiz Alberto Pinheiro de Freitas. A conexão entre as duas obras não é somente evidente, dada pela deliberada alusão ao romance de Lins e ao filme de Fernando Meirelles, ela é invocada, reclamada e demandada pelos autores. O livro é, segundo o que se lê, um tipo de desforra, a instância da justiça e da revelação da verdade do único protagonista que sobrevive à guerra entre os donos das bocas de fumo da favela de Cidade de Deus no final dos anos 1970, Ailton Batata. Ser “sobrevivente”, neste sentido, também corrobora duas intenções declaradas da obra: a vontade de veracidade e o impulso corretor.
O livro se divide em quatro partes. As duas centrais, onde efetivamente se lê Batata, são introduzidas e posfaciadas por Zaluar e Freitas, respectivamente. A introdução se volta às pesquisas sociológicas realizadas por Zaluar e à explicação do motivo da existência do livro: a primeira conversa com Ailton “Batata” Bitencourt, o Sandro Cenoura do romance e do filme, as entrevistas posteriores e o “dilema ético” que os dois Cidade de Deus haviam posto à pesquisadora.
Zaluar conta como Batata a procurou logo após a estreia do filme, indignado com o uso de parte da história da sua vida sem que ele soubesse. Contou que seu filho sofria bullying na escola, sendo chamado de “Cenourinha”. Zaluar também não escondeu sua insatisfação com o esquecimento do seu papel e o da pesquisa etnográfica que ela coordenou, que coletou as informações que Paulo Lins usou para escrever o romance. (Vale dizer que Lins agradece a Zaluar tanto na dedicatória do romance como na página final, deixando claro a importância das pesquisas das quais participou como entrevistador.) Para ajudar Batata, Zaluar indicou um advogado, que logrou receber alguma indenização da editora de Cidade de Deus. Ele ainda conseguiu a liberdade condicional por intermédio da sugestão de Zaluar. Mas, se essas conquistas, como ela explica, não foram suficientes para aplacar uma certa crise ética, este Cidade de Deus conseguiria colocar Ailton Batata, em primeiro plano, tirando o monopólio do relato da guerra das mãos de Lins e Meirelles.
A impressão de veracidade que adquire o romance de Lins, depois da leitura do livro de Zaluar, Freitas e Batata, é impressionante
Contudo, Cidade de Deus: a história de Ailton Batata, o sobrevivente é menos sobre a guerra e mais sobre Batata; é parte sobre Cidade de Deus, mas parte, grande, sobre as dinâmicas das prisões por que passou Batata. O “Capítulo 8 – Uma conversa sobre a vida na prisão”, é uma entrevista conduzida por Zaluar e Freitas sobre a experiência do Batata encarcerado. O 7 se chama “A polícia na rua e na delegacia”. Sobre a guerra em Cidade de Deus só há o capítulo 6.
A introdução de Zaluar é um potente, carismático e comprometido texto de alguém que se colocou a pensar fenômenos sociais contemporâneos na sua complexidade, sem resvalar em mecanismos interpretativos fáceis e socialmente nocivos. Por isso chama a atenção o modo pelo qual a narrativa conduz as falas de Batata. Zaluar esclarece que o livro é resultado de 60 horas de entrevistas. Mas esse material robusto e a sensibilidade da pesquisadora não foram suficientes para evitar que a “Parte I. Crescendo sem consolo” se constituísse num texto que visa encontrar o nexo lógico entre a vida de bandido e uma infância “em falta”, conduzido por um narrador que busca criar conexões superficiais.
A fala de Batata é frequentemente narrada em discurso indireto ou aludida: “As memórias da infância feliz no Urubu foram eclipsadas pela revolta que foi crescendo dentro dele (…). Nesse cenário começavam a se configurar os problemas psíquicos que iriam desaguar na vida do crime”.
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Talvez certa escassez das memórias da infância de Batata tenha forçado os autores a criar laços narrativos que desembocaram num texto de viés interpretativo raso: “Aos nove anos, sentindo-se muito rejeitado, preso em uma casa na qual não era bem acolhido, podia se esperar que sua revolta fosse intensa. Mesmo no Natal ou no Ano-Novo, porque não foi para a casa da mãe, sentiu-se 'muito triste com tudo aquilo, muito isolado', o que pode ser interpretado como: 'muito deprimido com aquela rejeição'. (…) Esse sentimento de revolta contra seus pais, deslocado para a escola e seus professores, tinha como contrapartida uma série de punições vividas e inconscientemente desejadas como forma de diminuir os sentimentos de culpa advindos das fantasias agressivas em relação a seus pais”. As explicações das razões da “infância sem consolo” que fizeram com que Batata optasse pelo crime parecem apressadas quando não se fornece ao leitor elementos discursivos e bases teóricas que permitam essa interpretação.
Nesse sentido, as notas de rodapé que deveriam elucidar passam também a operar de forma superficial. A que tipo de leitor se dirige uma nota que explica São Cristóvão como “bairro de classe média onde fica a favela da Mangueira e sua famosa escola de samba”? A surpresa advém do fato de que seja Zaluar a escrever o livro, que termina por sobrevoar várias possibilidades, da etnografia ao testemunho, sem satisfazer plenamente nenhuma expectativa.
Virginia Woolf, em Um quarto que seja seu, argumenta que na falta de material histórico sobre seu assunto, apelaria à ficção. “Dos meus lábios sairão mentiras”, teria dito Woolf, “mas com ligeiro travo a verdade, talvez; cabe-vos o papel de procurarem esta verdade”. Mentiras quando a verdade não é esperável; ficção quando a história falta. O salto que proponho é grande, mas talvez possa dimensionar o problema de uma narrativa que se faz existir a fim de corrigir duas obras ficcionais, ainda que alimentadas pela realidade.
Se as amarras narrativas que Zaluar e Freitas criam na Parte I do livro (a segunda parte libera grandes porções do livro à entusiasmante e inusitada narrativa de Batata) não convencem, talvez isso aconteça porque é de fato impossível reconstituir, através de uma linguagem objetiva e neutra, os gaps do discurso de Batata. Talvez quem melhor o fez tenha sido justamente Paulo Lins, por meio da imaginação e da ficção. Com efeito, a impressão de veracidade que adquire o romance de Lins, depois da leitura da Parte II do livro de Zaluar, Freitas e Batata, é impressionante.
Daí serem desnecessárias, senão totalmente deslocadas, as colocações de Batata que visam corrigir “informações” equivocadas no filme e no romance: “No filme Cidade de Deus, eles cometem um erro. Usam o Cabeção e o Vovô juntos (…). Não tem nada a ver”. Mas esses momentos são poucos. O que fica do seu relato em “Às armas! A guerra com Zé Pequeno”, é sua espantosa capacidade de criação discursiva de uma vida infame.
É claro que isso pouco ou nada justifica o uso da sua vida sem que Batata autorizasse o nascimento do Sandro Cenoura. Mas sabemos que a situação não é de fácil arbítrio. A questão remonta ao surgimento da literatura moderna que Jacques Derrida e sobretudo Michel Foucault souberam diagnosticar tão bem. A literatura moderna, para este, ocuparia lugar cativo no sistema que colocou o cotidiano em discurso, afirmando um posto onde se obstinaria a “ultrapassar os limites” e a colocar-se fora da lei. Todos sabemos dos inúmeros casos em que a verdade é colocada em evidência pelo texto ficcional, assim como dos casos que a Justiça levou a cabo sem conseguir determinar os limites da obra literária. O livro de Zaluar, Freitas e Batata se coloca na querela porque busca ser sua solução. É por conta dessa confusão que, contudo, vale a pena ser lido.
Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.