Literatura japonesa,

Ode à recusa

Primeiro livro de Yoshiharu Tsuge publicado no Brasil reflete sobre gestos de resistência passiva em uma sociedade movida pelo capital

21ago2020 | Edição #37 set.2020

Sukezo Sukegawa é um artista de quadrinhos que se recusa a desenhar. Ganhou notoriedade como autor de mangás “artísticos”, mas passou a negar propostas de editores até que elas pararam de chegar. Os motivos são difusos. Hoje, não pode procurar editores pois não é um iniciante e todos acharão que está “decadente”. Quando um editor enfim liga, ele recusa o trabalho por não ser “artístico o suficiente”, segundo sua mulher. Agora, Sukegawa vende pedras à beira de um rio.

O homem sem talento é cheio de recusas. Há o vendedor de pássaros que se recusa a abandonar a loja falida, onde Sukegawa nunca viu “um único cliente”. Sua obstinação remonta a um passado próspero e talvez a uma promessa no futuro, e sua teimosia em vender apenas aves silvestres que inspirem “sentimentos profundos”, ao contrário de pássaros “banais”, encontra ecos na história de Sukegawa — e também na do poeta errante Seigetsu, que Sukegawa descobre num livro. O mestre erudito, que se isolou por trinta anos nas montanhas, aparecia pelos vilarejos para dar poemas de presente aos moradores. No fim da vida, entregava-lhes somente folhas secas. 

As histórias do vendedor e do poeta são apenas dois entre muitos momentos sublimes deste primeiro livro de Yoshiharu Tsuge publicado no Brasil. Tsuge é uma lenda do mangá, um artista que, como Sukegawa, abandonou os quadrinhos (nos anos 1980) e hoje vive em relativo isolamento, trabalhando ocasionalmente em republicações ou adaptações de sua obra. Há outros paralelos biográficos. Os dois surgem num Japão ainda quebrado pela guerra e começam a publicar na época das “livrarias de empréstimo”, prática barata de circulação de livros que ajudou a impulsionar o mercado de quadrinhos do país. Ambos fazem um trabalho artístico num meio predominantemente comercial. E ambos parecem mais confortáveis à margem da sociedade — Sukegawa vendendo pedras à beira do rio, convivendo com outros detritos sociais, e Tsuge retratando o ambiente de desamparo com a poesia econômica dos grandes mestres da tradição de Bashô e Seigetsu.

A recusa de Sukegawa ao ofício e  ao talento remete de certa forma ao “Acho melhor não” do escrivão Bartleby, que certo dia não atende mais a uma demanda do chefe e segue assim até morrer de fome. O gesto de Bartleby tem um ímpeto antiburocrático, um confronto com a lógica do capitalismo e do mecanicismo. Algo similar ocorre com Sukegawa. Suas pedras não são raras ou sequer trabalhadas: são retiradas da margem do rio, passam por uma escolha minuciosa e depois ganham nomes como “vento”, “ira” e “tristeza”. Como não tem dinheiro, Sukegawa instala-se na beira de um rio com sua barraca. Absolutamente ninguém se interessa por suas pedras. Como lhe é apontado, não existe negócio se não houver investimento. O que tem não é exatamente uma loja.

Mas Sukegawa não deseja falhar. E, ao contrário de Bartleby, sua recusa não é um exercício simbólico e literário, mas um empenho real que afeta sua vida, se espalha por suas relações familiares e mina sua existência. Há um aspecto de concretude. As pedras haviam sido moda uns anos antes e fazem parte de uma tradição chamada suiseki, a arte de contemplar uma única pedra “que representa a paisagem, com montanhas, rios”. Ganhava-se dinheiro com elas, e há um episódio tristíssimo, em que Sukegawa faz um enorme investimento para participar de um leilão junto aos últimos colecionadores de pedras, que lembra o Will Eisner de O edifício, com o fantasma do violinista que todos os dias toca na mesma esquina. Há uma expressividade cartunesca no traço que carrega a mesma tristeza e dignidade dos desafortunados de Eisner. 

Sukegawa faz planos constantes para ganhar dinheiro: as pedras, câmeras fotográficas restauradas, uma passarela que atravessaria o rio e pela qual cobraria a passagem, a venda de originais dos antigos mangás. Ele é como o vendedor de livros usados Yamai, personagem que o presenteou com o livro de Seigetsu. Yamai passa o dia deitado e, quando se levanta, é para andar cambaleante pelas ruas qual um enfermo. Sua mulher, todavia, nunca o viu doente: Yamai finge estar debilitado para que esperem pouco dele. Esses gestos de resistência passiva, termo que aparece no conto de Melville, acumulam-se no livro de Tsuge, várias vezes ligados a noções de trabalho ou atividade comercial. Mas a crise de Bartleby parece ter uma ligação com a própria natureza do trabalho. Sukegawa, por outro lado, acha que as revistas nas quais pode publicar estão de alguma forma abaixo do seu trabalho. Os três, Bartleby, Yamai e Sukegawa, têm algo de depressivo.

Melancolia

A situação no lar de Sukegawa é de penúria, e sua esposa, que faz bico de entregadora de panfletos, não se conforma com a recusa dele em voltar aos mangás. Os retratos da relação de Sukegawa com o filho e a esposa, cujo rosto não aparece nas primeiras histórias, compõem a parte mais comovente e melancólica do livro. Episódios como aquele em que ela passa por Sukegawa na rua sem cumprimentá-lo, por vergonha ou desprezo, as agressões entre eles, o desespero, a mesquinharia, tudo confere uma atmosfera sufocante ao livro. A sucessão de fracassos de Sukegawa aumenta a incompreensão da mulher. Ele é como Seigetsu, o grande poeta que vive na rua cheio de piolhos. E, assim como Seigetsu, que no fim da vida presenteava os outros com folhas secas, como se a própria natureza fosse insuperável pela poesia, Sukegawa vende pedras sem valor que ninguém compra.

A natureza de Sukegawa é apresentada quase de forma bruta, e a própria narrativa parece se inspirar na tradição do suiseki. Observamos essa série de episódios que conduzem o homem sem talento — que “não serve pra nada”, como tantos personagens do livro — com estranha naturalidade. Sua vida é narrada com uma força resignada e uma brutalidade que não encontram resistência no protagonista. Sukegawa vai se colocar cada vez mais à margem, a experiência não como um ato de renitência (feito Bartleby, quando tem que ser removido do escritório), mas como um elogio à recusa, a certa dignidade de propósito (ele fica surpreso com o valor de seus originais de quadrinhos). O homem sem talento é uma obra-prima discreta como seu autor, um panorama das possibilidades da arte e da vida que ultrapassam as noções de mercado e consumo. 

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

André Conti

É editor, tradutor e jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.