Literatura japonesa,
Juventude transviada
Quase cinquenta anos depois de publicação, ‘Azul quase transparente’ é retrato vívido de geração deslocada
06nov2023 | Edição #76Se a mística de que os anos 60 foram coloridos por hippies chapados praticando o sexo livre e toda uma contracultura pacifista persiste até hoje, é muito culpa dos Rolling Stones. Mas a banda também foi responsável pelo enterro simbólico daquela década, com o show em Altamont, em que, enquanto Mick Jagger cantava “Under My Thumb”, um integrante dos Hells Angels, gangue que fazia a segurança do evento, matou um homem a facadas. Era dezembro de 1969. Os Stones haviam lançado, pouco antes, o celebrado Let It Bleed. Um novo disco de estúdio do grupo só sairia em 1971.
Em abril de 1971, os anos 60 eram passado. Brian Jones estava morto. Os Beatles tinham se separado. O Vietnã queimava. A contracultura, e os hippies, viraram anacronismos. Os anos 70 chegaram. Com o punk, a disco music, a blaxploitation, a Nova Hollywood. E os Stones lançavam, ali, Sticky Fingers, disco que trazia pela primeira vez a língua para fora que viraria um dos mais conhecidos símbolos da cultura pop. Com capa criada por Andy Warhol, as músicas citavam sexo, drogas e alguma violência.
Muito sexo, muitas drogas e alguma violência (e a presença dos Stones) formam o recheio do cotidiano de Ryū e de seus amigos em Azul quase transparente, livro publicado em 1976 que foi o primeiro de muitos escritos pelo japonês Ryū Murakami. A edição brasileira é da DarkSide, em tradução de Ayumi Anraku.
Azul quase transparente, de Ryū Murakami
Enquanto tomam sedativos com uísque num bar, os jovens de pouco mais de dezoito anos ouvem “Time Is On My Side”, dos Stones. Em seguida, Yoshiyama, amigo de Ryū, pega Left Alone, do jazzista Mal Waldron, para colocar na vitrola. Sua namorada, Kei, que estava em pé no balcão do bar, desce e pede para ele colocar Sticky Fingers, que tinha acabado de ser lançado.
Se Stones, The Doors, Bar-Kays e It’s a Beautiful Day são alguns dos nomes que fazem a trilha sonora dos personagens, a lista de drogas que eles tomam nas pouco mais de cem páginas do romance é bem mais extensa: metanfetamina, morfina, cola, maconha, heroína, haxixe, ácido, mescalina e sedativos variados.
Muito sexo, muitas drogas e alguma violência formam o cotidiano de Ryū e de seus amigos
Esses jovens estão longe de ser hippies, de ter qualquer laço com a contracultura dos anos 60. Se aquela geração fazia questão de se inserir na sociedade enquanto a tentava mudar por meio da paz e do amor, Ryū e seus amigos se fecham num universo próprio, seja dentro de casa ou, no máximo, em alguns bares e shows. Quando alguma brecha é aberta, são vistos com espanto e certo desprezo.
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Narrador do livro, Ryū une em torno de si, além de Yoshiyama e Kei, amigos como Moko, Reiko (que afirma querer ser uma “viciada perdida de verdade”), Okinawa (que já havia passado por uma rehab nos Estados Unidos), Kazuo (que adora tirar fotos) e Lily — uma prostituta que é a parceira sexual mais estável de Ryū. Ninguém aqui parece trabalhar. Passam os dias chapados e trepando entre si. Ao descrever ambientes e cenas, Murakami não economiza nos detalhes, e certas passagens podem criar desconforto (há ações que são estupros, mas os personagens, ali, não encaram como tal; ou não têm a capacidade de encarar como tal, tamanha a quantidade de drogas ingeridas).
Os jovens de Azul quase transparente exalam um niilismo quase asfixiante. Vivem perto de uma base aérea norte-americana. Se relacionam sexualmente com eles. Mas não há perspectiva, não há objetivos a alcançar, não há redenção a ser conquistada.
Hedonismo cru
Murakami não pinta os seus personagens com tintas alegres nem glamoriza o modo de vida deles, não é condescendente e tampouco aponta o dedo. Eles são o que são. Uma cozinha tem baratas rondando a louça suja; num bar, há uma sopa de missô com tofu em decomposição. É um hedonismo cru e meio deprimente, que lembra obras como Trainspotting (mas sem a violência impulsionada pelas drogas do livro de Irvine Welsh) e Kids, filme de Larry Clark. E, de certa forma, We Are Who We Are, embora bem mais áspero e desesperançoso do que a minissérie dirigida por Luca Guadagnino.
Uma passagem em que Okinawa e Reiko injetam heroína em Ryū dá um pouco do tom da narrativa:
Okinawa afundou a ponta da agulha molhada na pele em direção à veia inchada. Ao abrir a mão que estava fechada, o meu sangue escuro entra no cilindro em contrafluxo. Okinawa dizia olha aí, olha aí, enquanto pressionava o êmbolo devagar injetando de uma vez a heroína misturada com sangue pra dentro de mim.
Pronto, e aí? Okinawa ri e tira a agulha. Quando a pele vibrou soltando-se da agulha, a heroína já corria para a ponta dos dedos e um impacto agudo chegava até meu coração.
Outra, quando todos vão a um show dos Bar-Kays:
Moko está dançando bem em frente ao palco, seminua. Dois fotógrafos apertam os disparadores, capturando Moko. […] Um homem pequeno que segurava um saco de cola subiu ao palco a passos incertos e agarrou por trás a mulher que cantava. […] O cara tocando baixo ficou bravo e bateu com o pedestal do microfone nas costas do homem.
Nesse mesmo show, Ryū encontra um amigo, com quem tocava numa banda. O amigo se lembra de uma menina que eles conheceram. E conta que estavam em sua casa quando o fogo do aquecedor passou para a saia dela e a menina, de quinze anos, morreu carbonizada. Ela tinha um coelho. O amigo de Ryū, Male, ficou com o animal. Depois de um tempo, comeu o bicho, que “tinha a carne meio dura”, por isso ele o devorou com ketchup.
As cenas são narradas com uma naturalidade incomum. Não há sobressaltos no tom. Lily injeta metanfetamina enquanto escova os dentes. Numa festa, eles ouvem Luiz Bonfá e James Brown enquanto fumam haxixe e trepam. É uma orgia que acaba quando a namorada de um dos presentes aparece e vai para cima dele. A namorada é irmã de um yakuza, a famosa máfia japonesa, alguém avisa.
Quase cinquenta anos depois de ter sido publicado, Azul quase transparente é um retrato ainda vívido de parte de uma geração deslocada e que pairava inerte ao que acontecia à sua volta. Murakami não julga e não romantiza, e esse é o principal mérito do livro. Os personagens são falhos, autodestrutivos, alguns deles repugnantes e com uma régua moral esburacada. Nenhum deles parece ter algum propósito de vida. Mas, bem, é a escolha deles. Em dias em que se vende a ideia de que todos vivemos conectados e cada ação precisa ter algum significado para ser capitalizada (financeiramente ou não), o romance é um respiro existencial.
A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.