Literatura japonesa,

Instinto assassino

Traduzido pela primeira vez no Brasil, o escritor japonês Kotaro Isaka aposta nas tramas engenhosas e no fascínio por mistérios e crimes

26ago2022 | Edição #61

Desde criança rodeado de livros, Kotaro Isaka estava no ensino médio quando ganhou do pai o livro de crítica de arte no qual leu que não há forma mais feliz de viver do que com o poder da imaginação. O autor japonês contou à Quatro Cinco Um que dessa frase, um bocado clichê, veio o estalo de que queria ser escritor.

A imaginação é marca poderosa de suas histórias, que lhe renderam a etiqueta de best-seller no Japão. Trem-bala, de 2010, é o primeiro livro do autor a ganhar tradução e publicação no Brasil. É uma história de ação, um encontro entre assassinos profissionais com diferentes especialidades em uma viagem de Shinkansen, o trem-bala, entre Tóquio e Morioka, capital da província de Iwate. O thriller tem como grande mérito a construção de um rico universo literário, que investe na complexidade dos personagens. “Não acho que somos divididos entre o bem e o mal. Esses já são de início conceitos difíceis de definir.” Seus protagonistas são figuras ambíguas, que nublam a dubiedade das máscaras sociais que vestem com uma dissimulação de alto nível. “Sempre aparecem assassinos em mangás ou filmes. Não gostaria de encontrar um deles na vida real, mas o assassino na ficção é tão fascinante que eu quis escrever um romance no qual os leitores não conseguissem adivinhar quem seria o último personagem a sobreviver”, diz Isaka.

No centro da trama está Satoshi, um jovem aparentemente certinho que se revela perverso. Ele é o elo com Kimura, homem que busca vingança pela violência sofrida pelo filho, em coma. A viagem dos dois cruza com a de outros três assassinos por causa de uma mala que carrega um segredo e muda de mãos quando não deveria. Nanao, um assassino profissional todo atrapalhado, dá o tom cômico e bem-humorado. Assim como a dupla — que não fica atrás na falta de jeito — Tangerina e Limão, assassinos favoritos do autor. “Gostei muito de escrever sobre eles.”

Trem-bala é daqueles livros que viram filme já na leitura, com descrições detalhadas e cenas que se desenham na cabeça dos leitores. A chegada às telas de sua adaptação cinematográfica coincide com a tradução brasileira. O filme, dirigido por David Leitch, traz o ator Brad Pitt no papel principal e tem no elenco outros grandes nomes, como o da atriz Sandra Bullock. A superprodução sofreu críticas por ter afunilado de forma comprometedora as subjetividades que Isaka criou no livro. O escritor contemporiza: “Sinto que Hollywood respeitou mais o conteúdo do que eu estava esperando”. Outras de suas obras também já foram adaptadas para o cinema no Japão, na China e na Coreia. O autor afirma que prefere sempre deixar os filmes para os diretores. “Se perguntam minha opinião, obviamente eu falo o que penso. E se for para o filme se tornar uma grande obra, não me importo muito com diferenças em relação ao conteúdo do meu livro.”

Seus personagens refletem o paradoxo entre o desejo por uma vida serena e a curiosidade sobre a morte

Ele também não gosta de interferir na tradução. “Gosto de confiar nos tradutores; eles sabem o que fazem.” Os jogos de palavras presentes em seus romances são um desafio para as versões em outros idiomas, mas o escritor considera que não conseguiria contribuir para encontrar equivalências em outras línguas.

Isaka avalia que no Japão, onde Trem-bala vendeu 700 mil exemplares, a literatura é mais popular do que em outras partes do mundo. “Ainda assim, em uma escala menor que a de outras formas de entretenimento e cultura, como quadrinhos, cinema ou televisão”, pontua. Para ele, os escritores têm que se esforçar muito para suas obras chegarem ao maior número de pessoas, mas há um movimento para que se contemplem leitores com perfis diferentes. “Sinto que muitos apreciam as partes divertidas da literatura, por isso é entretenimento, mas também há muitos que valorizam uma literatura mais experimental.” Ele mesmo, como leitor, alterna entre a escolha pela forma e a pelo conteúdo. Gosta tanto dos livros com boas tramas quanto daqueles que valorizam o texto e as estratégias narrativas e busca influências nos dois grupos. “No primeiro caso, são basicamente escritores japoneses de mistério e crime; no segundo, autores como John Irving, Kenzaburo Oe, Richard Powers, Vargas Llosa.” Os brasileiros ainda estão ausentes da estante do escritor. “Mas gostaria de uma boa recomendação”, diz.

Emoção perigosa

Segundo o escritor, parte do sucesso de suas obras está no gênero. “Histórias de crime e suspense são muito populares no Japão. Por um lado, as pessoas querem viver em paz, por outro há um certo instinto de querer (ou ter que) superar dificuldades.” Para Isaka, trata-se de um mecanismo baseado na emoção da dúvida sobre a sobrevivência: viveremos ou não? “Essa emoção é perigosa na vida real, então apreciamos a simulação da ficção, como fazemos com as montanhas-russas”, completa.

Seus personagens também refletem esse paradoxo entre o desejo por uma vida serena e a curiosidade pelo risco de morte. São convictos, no entanto, na dedicação ao ofício de tirar vidas. Um deles pergunta por que não pode matar pessoas. Isaka diz que a questão saiu de um debate dos anos 90, quando adolescentes faziam essa mesma pergunta em um programa da tv japonesa. Ele diz não notar muita diferença entre os questionamentos dos jovens de hoje e os de três décadas atrás. Mas acredita que a internet deu mais autonomia às pessoas para encontrarem as respostas que buscam. “Os jovens de hoje perguntam menos aos adultos; acho que simplesmente procuram na internet.”

Fora do universo dos ladrões e assassinos, é na desinformação que ele acredita estarem as roletas-russas contemporâneas. A vigilância excessiva e o autoritarismo entram na lista do que assusta o escritor. “Tenho medo de coisas que não me dão a informação necessária. Em um romance que escrevi, pesquisar por uma certa palavra nos colocava em uma situação perigosa e acho que essa situação também me daria medo.”

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Gabriela Mayer

Jornalista e crítica literária, criou o podcast Põe na Estante.

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.