Literatura israelense,
Apanhando os sonhos de palestinos e israelenses
Escritor e pesquisador de neurocognição compartilha relatos dos pesadelos de pessoas que vivem na tensão das fronteiras entre Cisjordânia, Gaza e Israel
24out2021 | Edição #51Alguns anos atrás, um míssil caiu muito perto de onde estou agora, em um campo de trigo próximo à fronteira entre Israel e Gaza. Escutei um breve ruído sibilante e em seguida vi um buraco no chão. Por sorte, era um míssil defeituoso que, ao atingir a superfície, penetrou o subsolo em vez de explodir. Desde então, sonho com esse míssil de tempos em tempos. O caso mais recente ocorreu alguns meses atrás, logo após uma irrupção de violência na região. No sonho, encontrei Natalie Portman naquele campo amarelado (muitas celebridades fizeram participações especiais, incluindo Barack Obama e metade do elenco do programa humorístico Saturday Night Live). Assistimos à queda do míssil sem saber ao certo se corríamos perigo ou se não passava de um efeito especial do filme que estrelávamos. No dia seguinte, descobri que muitas pessoas ao meu redor também tinham seus sonhos diretamente afetados pela situação política. Por ser escritor e pesquisador de ciência neurocognitiva, sou fascinado pelo modo como nosso cérebro percebe e processa narrativas. Assim, comecei a compilar os sonhos de palestinos e israelenses.
Como seria de esperar, muitas pessoas com quem falei descreveram sonhos apavorantes envolvendo situações de medo ou risco de morte. Por que é tão comum ter sonhos desagradáveis durante períodos assustadores e estressantes? A ciência ainda está longe de oferecer uma resposta inequívoca. Enquanto alguns veem os sonhos como meras atividades cerebrais aleatórias ocorridas durante o sono, outros afirmam que os sonhos podem agir como “simulações cerebrais” para nos ajudar a lidar com ameaças na vida real. Orat, uma jovem israelense judia, disse-me: “Sonhei que estava em um concerto de música em pleno dia. Todo mundo estava curtindo quando, de repente, o Hamas anunciou que iria ‘desligar’ o céu, e então tudo ficou completamente escuro. Mísseis despontaram no horizonte. Foi aterrorizante, eu não tinha para onde escapar. Acordei em pânico logo antes de um míssil me atingir”.
Uma forma semelhante de lidar com esse tipo de ameaça pode ser verificado no sonho de Raseel, uma garota palestina de Gaza: “Sonhei que uma amiga e eu percorríamos uma trilha muito longa enquanto bombas explodiam o tempo todo ao nosso redor. Procuramos um lugar para nos escondermos e achamos uma casa onde podíamos entrar. Entramos e nos escondemos ali, mas de repente a casa também começou a explodir”.
‘Pesadelos recorrentes podem gerar agressões e introversão, além de danos às habilidades cognitivas
Outra teoria sugere que os pesadelos que nos acordam no meio da noite são um fenômeno distinto dos chamados sonhos ruins. Segundo essa teoria, esse tipo de sonho ruim atua como uma exposição controlada a emoções negativas que nos ajuda a regulá-las na vida real; já os pesadelos podem ser vistos como um “bug do sistema” que provoca uma falha na regulação de nossas emoções e, em vez de suprimir emoções negativas, acaba por acentuá-las. Um pesadelo recorrente — sobretudo entre crianças e adultos de Gaza e das cidades do sul de Israel, como Ashkelon e Sderot — consiste em uma situação na qual a pessoa que sonha grita por ajuda, mas ninguém escuta. Alguns pesadelos também eram muito violentos e envolviam o desaparecimento ou morte de parentes. Muitos entrevistados mencionaram ainda que sofrem de insônia desde que passaram por períodos de violência e relataram um estado de alerta constante. Rania, uma criança palestina de Gaza, explicou: “Toda vez que ouço o telefone tocar, sinto medo e ansiedade. O sono também foge de mim. Só consigo pegar no sono depois que o sol nasce”.
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Jamal Dakduki, psicólogo árabe residente em Israel e especializado em traumas, explica que descrições como as de Rania e de outras crianças são indícios de reação pós-traumática. Dakduki trabalha para os Médicos pelos Direitos Humanos e visita Gaza regularmente. “Crianças da região me disseram que seus pesadelos começam assim que a noite chega. Pesadelos recorrentes podem gerar agressões e introversão, além de danos às habilidades cognitivas, como redução da capacidade de atenção, de aprendizado e de comunicação”, afirma. “A maioria das crianças de Gaza sofre de sintomas pós-traumáticos. Organizações como a nossa tentam ajudar, mas quase não há tratamento para traumas em Gaza.” A constante tensão entre Israel e Gaza pode entrar em erupção a qualquer momento, e por isso o trauma é, para muitos, interminável. Uma pesquisa mostrou que 42% dos israelenses que moram perto da fronteira com Gaza sofrem de sintomas de exposição prolongada a eventos traumáticos.
Sorvete, faláfel e sushi
Todavia, conforme ouvia várias pessoas, fui descobrindo que, ao contrário das minhas expectativas, muitos dos sonhos delas não eram nada traumáticos ou assustadores. Alguns apontaram que seus sonhos eram o exato oposto disso: otimistas, e até engraçados. Em vez de refletir a dura realidade, o sonho a alterava. Zohar, um judeu israelense, descreveu: “Sonhei que mísseis cheios de sorvete caíam sobre mim. No início eu estava muito assustado, mas então achei que não era tão ruim assim. Um míssil atingiu um prédio, mas não causou nenhum dano. Crianças ficaram ao redor dele para comê-lo animadamente. Passei o sonho inteiro comendo sorvete, foi divertido”.
Muitos contaram que seus sonhos se passam em lugares que evocam memórias importantes para eles, como a Mesquita de Al-Aqsa e o Monte do Templo, enquanto outros se surpreenderam ao sonhar com locais aos quais normalmente não podem ir. Uma mulher israelense sonhou com o Porto de Gaza, e um palestino de Gaza visitou um mercado em Haifa. Alguns sonhos incluíam encontros cara a cara entre palestinos e israelenses. Diversas pessoas mencionaram que jamais tiveram um encontro significativo desses — portanto, o sonho foi a primeira ocasião em que isso aconteceu. Nasreen, uma palestina da Cisjordânia, descreveu: “Sonhei que havia sido enviada a Tel Aviv como espiã, mas durante a missão acabei me apaixonando por um homem judeu. Casamos, e, ao final do sonho, o medo de que minha mãe ficasse sabendo do casamento era menor do que o de descobrirem minha condição de espiã”.
Josh, cristão palestino da Cisjordânia, contou: “Tive um sonho estranho e divertido. Naquele dia tinha participado de um confronto com soldados israelenses. Eu estava na linha de frente e podia ver seus rostos por trás dos capacetes. À noite, sonhei que estava em um restaurante comendo homus e faláfel com aqueles mesmos soldados. Contávamos piadas e nos divertíamos. Depois nos levantamos e fomos embora em um veículo do exército. Sentei no banco do motorista e fui para casa com eles. Acordei confuso”.
Benjamin Netanyahu, ou “Bibi”, que deixou recentemente o cargo de primeiro-ministro de Israel, apareceu em muitos sonhos. Yehonatan, judeu israelense, disse que: “Consegui uma entrevista exclusiva com Bibi perto do rio Jordão. Na entrevista, ele se abriu e me contou que tinha problemas para dormir. Estava cansado de si mesmo e da persona pública que tanto sofria para preservar. Ele me ensinou a construir tubulações de esgoto, e eu o ensinei a meditar”. Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, também figurou em um sonho, no qual decide renunciar ao cargo para realizar seu verdadeiro sonho: abrir um restaurante de sushi. Em outro, ele joga futebol e, mesmo aos 85 anos, se mostra muito talentoso.
Quando iniciei esse projeto, achava que os sonhos eram guiados apenas pelas emoções e não eram nada além de um reflexo incontrolável da situação de vida das pessoas. Mas, após compilar os sonhos de mais de cinquenta israelenses e palestinos, percebi que os sonhos não se limitam a ecoar a realidade: eles também a questionam e oferecem opções para mudá-la. Algumas das pessoas com quem conversei tomaram a decisão consciente de ter sonhos lúcidos, em que se pode influenciar conscientemente o seu conteúdo. Um homem palestino me contou que visita sua falecida avó quando precisa de conselhos. Uma mulher judia relatou que um dia simplesmente decidiu não sonhar mais; outra que, exausta da situação política, decidiu no último mês tirar longas férias na Itália em seus sonhos.
Os sonhos não se limitam a ecoar a realidade: também a questionam e oferecem opções para mudá-la
Em hebraico e em árabe, assim como no inglês e no português, a palavra “sonho” pode significar tanto um sonho noturno como um sonho para o futuro. Algumas crianças, quando perguntadas a respeito de seus sonhos, apresentaram a interessante tendência de responder as duas coisas e falaram em um futuro melhor e mais pacato. Esse pequeno fragmento de sabedoria infantil é um lembrete claro de que nós, humanos, imaginamos possibilidades novas e melhores o tempo todo, seja quando estamos acordados, seja durante o sono. E algumas dessas pessoas me mostraram que, tanto em nossos sonhos como em nossas vidas diárias, não somos meros observadores passivos, mas agentes ativos que podem mudar a realidade para melhor. (Tradução de Bruno Cobalchini Mattos.)
Esse texto tem apoio do Instituto Brasil-Israel.
Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.
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