Literatura infantojuvenil,

A cura pelo sonho

Com ilustrações de Gustavo Caboco, novo livro da autora de “O desejo dos outros” apresenta o poder de sonhar na visão dos yanomami

27set2023 - 17h04 | Edição #74

Impossível não relacionar Mari hi: a árvore dos sonhos com o livro anterior de Hanna Limulja, O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami, também publicado pela editora Ubu, em 2021. Mari hi, a árvore conhecida do povo yanomami que, com suas flores, dá os sonhos para a humanidade, tem lugar central em ambas as obras, tanto que ilustra as duas capas. Na de O desejo dos outros, vemos um desenho feito por Davi Kopenawa Yanomami, importante xamã e liderança política desse povo; já em Mari hi temos uma versão da árvore produzida pelo artista wapichana Gustavo Caboco. 

Trata-se de uma entidade poderosa, com galhos compridos feito braços, tronco forte e grandes raízes, que lembram pés. É quando as flores de Mari hi desabrocham que os sonhos são enviados às pessoas. Essa árvore maravilhosa é o coração de ambos os livros. E os sonhos, como demonstra O desejo dos outros, é um aspecto crucial na sociedade yanomami, com o poder de transformar o mundo. Para tanto, a mediação do xamã é vital.

Encontrando Davi

Luna, a protagonista do livro mais recente de Limulja, viaja por meio dos sonhos para encontrar Davi, o grande sábio da floresta, ao ver a cidade onde mora assombrada por um monstro invisível. Quando isso acontece, passamos a desconfiar que a menina tem muito de Limulja. Mari hi é, assim, um novo gesto da autora de dividir com os não indígenas um pouco de um mundo concebido sobre outras bases, a partir do seu próprio movimento em direção à cultura e luta do povo yanomami. 


Mari hi: a árvore dos sonhos é um novo gesto de Hanna Limulja de dividir com os não indígenas um pouco de um mundo concebido sobre outras bases

Esse gesto é agora direcionado às crianças, talvez mais permeáveis a outras visões de mundo e predispostas a enxergar a beleza, a diversidade e a potência dos outros seres que partilham dele. Por isso, na história, quando o monstro invisível passa a adoecer as pessoas, afetar seus sentidos e impedir que elas se toquem — levando milhares à morte, a ponto de o céu ficar claro de tantos entes queridos transformados em estrelas —, é uma menina quem tem o impulso de procurar um lugar possível onde dormir — e sonhar — e fazer novas alianças.

‘Mari hi’ é um novo gesto da autora de dividir com os não indígenas um pouco da cultura dos yanomami

É bonito ver Davi Kopenawa transformado em um personagem que, aliado a uma criança e com grande generosidade, ajuda a promover a cura do mundo pelos sonhos, não sem o auxílio de Mari hi e de todos os outros seres da floresta — animais, pedras, rios, árvores e até os grãos de areia: “Porque tudo na floresta tem uma razão de ser, não está no mundo à toa”. Em uma sociedade que não sonha mais e em que a noite se tornou igual ao dia, com sentidos embotados e o senso de uma luta coletiva adormecido (em meio a uma crise sanitária, humanitária e ambiental que prontamente reconhecemos), é um indígena, por meio da integração com a natureza, que vem nos devolver a capacidade de regeneração e o maravilhamento de estar vivos. 

Parece apenas que o desejo da autora de aproximar seus leitores das ciências indígenas é maior do que o livro e, por isso, acaba nos deixando com vontade de mergulhar mais fundo na cosmogonia yanomami, de descobrir como foi que esse povo criou a noite, e até quem são os xamãs e como cumprem a difícil missão de segurar o céu. Quem sabe em outra história?

Para além da capa, as ilustrações de Caboco, com seu traço delicado e preciso, povoam o livro com seus personagens característicos, humanos e não humanos, com pessoas que viram pedras em meio a uma terra arrasada; montanhas com olhos, nariz, boca e ouvidos; céus povoados de antigas constelações indígenas e estrelas cadentes com rastros de olhos dos mais velhos que se encantaram. Com uma visualidade carregada de sentido e ancestralidade, o trabalho de Caboco é um dos pontos fortes da obra, conferindo-lhe tridimensionalidade, outras camadas de leitura e uma magia toda própria, dançante.

E que Mari hi possa espalhar suas flores sobre nós.

Quem escreveu esse texto

Rita Carelli

Escritora, atriz, ilustradora, é autora de Terrapreta (Editora 34)

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.