Literatura,
Jogo duplo
Dois lançamentos de autor argentino processado por viúva de Jorge Luis Borges parecem rir das convenções do realismo literário
09ago2021 | Edição #48Até o momento, a notoriedade de Pablo Katchadjian no Brasil se devia menos à sua escrita e mais a um causo. Ao longo da década passada, viu-se envolvido num tortuoso processo jurídico movido por María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges e detentora dos direitos sobre a obra do criador de Pierre Menard. Kodama acusava Katchadjian de plágio por causa do livro El Aleph engordado, publicado em uma edição sem registro comercial de duzentos a trezentos exemplares. O texto em questão é exatamente um engordamento do original: sem alterar a ordem das 4 mil palavras do conto “El Aleph” original, Katchadjian acrescentou outras 5.600 ao texto. Entre idas e vindas dos tribunais argentinos, chegou a ser condenado, terminou absolvido, e a história circulou bastante. Mas Katchadjian foi pouco lido por aqui ao longo desses anos.
Numa coincidência que parece quase intencional dentro do projeto literário de Katchadjian, chegam ao Brasil, praticamente ao mesmo tempo, duas traduções de livros seus: A liberdade total e O que fazer. Essa aparência de intencionalidade vem da impressão de que algumas recorrências perpassam os projetos do autor, como o jogo de duplos e espelhos. Podemos pensar em El Martín Fierro ordenado alfabéticamente (Katchadjian reescreveu o poema ordenando alfabeticamente os versos) como duplo do original. O mesmo vale para El Aleph engordado. E seria possível ainda pensar nesses dois projetos que aplicam processos sobre textos centrais da literatura argentina como trabalhos irmãos, duplos, especulares.
Já os dois lançamentos, à primeira vista, não justificariam esse modo de pensar, pois apresentam diferenças muito claras. A liberdade total organiza-se apenas a partir de falas dos personagens, trazendo um aspecto e um ritmo de texto teatral para o que se lê e também para o que se vê nas páginas. O que fazer seria quase o contrário: estruturado em blocos, massas de texto, em que convivem narrador e falas, criando volumes de letras, sem o arejamento que diálogos criam nas páginas. Ritmos diferentes, estruturas diferentes, modos muito distintos de narrar e, no entanto, os dois textos parecem estar em contato de variadas maneiras, como se fossem duplos, como se as editoras DBA e Relicário houvessem entrado num jogo com o autor para reforçar esses duplos.
Nesse jogo, é interessante notar que as duas narrativas têm como centro pares de personagens. A liberdade total abre com o diálogo entre A e B, no primeiro de muitos debates conceituais que vão movendo a narrativa. Discutem a existência da liberdade. O personagem A parece encarnar o cético, quase o niilista. E B parece ser o lírico, esperançoso, subjetivista. O texto abandona sua forma de puro debate quando surge C, espécie de carcereiro, e nos revela que A e B estão presos e discutem a liberdade porque C mandou que o fizessem. A e B conseguem escapar e fazem uma jornada por um espaço desconhecido para nós, para eles, para E, F, I, J — personagens que vão encontrando nesse lugar que “parece um mundo criado por um deus menor, ou um demônio pouco hábil, ou ao menos por alguém que não teve muitas ideias”.
Nos livros, questionam-se a narratividade mimética, as jornadas do herói e os personagens complexos
O que fazer abre com “Estamos Alberto e eu”, apresentando a dupla que será o núcleo do texto. Aqui a ideia de uma progressão de narrativa e ações é mais rarefeita do que em A liberdade total — no qual, apesar da indefinição de conflito, os personagens agem e a história vai para a frente. Em O que fazer, a dupla “Alberto e eu” se vê numa espécie de redemoinho onírico. São blocos de texto em que cenas se encadeiam como em um sonho. Os personagens estão dando aula em uma universidade inglesa, mas em seguida estão no banheiro de uma boate para depois ir para um quartinho com prateleiras tomadas por bonecos. E, nesses trânsitos, alunos de dois metros e meio engolem professores, Alberto perde os dentes e personagens se põem a cantar. As imagens citadas, assim como um bar, um grupo de bebedores, a jovem que é velha, a guerra, o homem que é pombo, uma ilha, se repetem e se recombinam, do mesmo modo que expressões e ações de “Alberto e eu”, formando novos arranjos a cada uma das entradas.
Procedimentos
A despeito das evidentes diferenças dos livros, ambos têm como linha mestra uma dupla de personagens que possui, talvez, como seu maior conflito a incapacidade de se separar. A e B, ao longo do seu percurso, não conseguem se afastar um do outro. Quando Alberto se distancia ou é literalmente engolido por um aluno, o “eu” que narra relata sentimentos desconfortáveis, confusos, um tipo de perda de consciência, como se a separação o desconectasse do mundo.
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Tanto A liberdade total quanto O que fazer parecem deliberadamente jogar, e às vezes até rir, com as convenções do realismo literário. Aliás, este mostra-se um dos interesses de Katchadjian: questionar a narratividade mimética, as jornadas do herói, os personagens complexos e propor procedimentos — em vez de conflitos narrativos — como motores de escrita. E nesses livros esse tensionamento da narrativa romanesca típica fica mais evidente, porque há histórias e personagens fazendo coisas — porém, muito longe de um romance realista. É possível apostar que o que move os textos é mais um processo externo aos personagens do que as relações que se dão no espaço ficcional, num modo de operar que aproxima essas escritas de outros campos da criação. O procedimento ganha relevo.
O que fazer dá a impressão de se movimentar pela lógica das variações, tão típicas da música. Há um conjunto limitado de motivos, que são recombinados em novas composições, que referenciam as anteriores sem deixar de ser novas. Nesse sentido, é possível ver aí quase um manifesto, no mínimo um lembrete, do caráter recombinatório de referências inerente a toda prática literária. A liberdade total traz sugestões teatrais. Muito se fala sobre relações beckettianas e, sim, elas estão lá, desde a dupla sem destino que conduz a história até um personagem que arrasta outros com uma corda-coleira. E também Ionesco e todo um modo de pensar a ficção nos palcos que se convencionou chamar de absurdo.
Não é só no jogo com o absurdo que os dois livros parecem rir das convenções do realismo. A manipulação do tempo em ambos é quase um deboche
Mas não é só no jogo com o absurdo ou com o teatral ou com a música que os dois livros parecem rir das convenções do realismo. A manipulação do tempo em ambos é quase um deboche que evidencia a artificialidade de qualquer narrativa literária. Em A liberdade total, reticências de um personagem, seguidas de reticências de outro, fazem passar um bom período de tempo. Em O que fazer, o uso das expressões “Por algum motivo”, “De repente”, “Não sei o que acontece, mas”, “De alguma maneira” são as senhas para jogar os personagens para outros tempos e espaços. Há aí também algumas risadas sobre a busca obsessiva pela construção da verossimilhança, por ideias como “se uma espingarda aparecer no meu conto, saibam que ela vai disparar”.
Sobretudo, o autor nos oferece uma espécie de carnaval simbólico. Se me permitem o trocadilho, não chega a ser uma liberdade total de significação, porque sabemos que o signo não aceita tudo. Mas nos deixa com a pergunta: o que fazer com essas imagens, com essas indefinições, com esses descolamentos da mimética? São escritas que não querem explicar, que passam ao largo de uma noção declaratória, representacional do fazer literário. Apostam no às vezes esquecido poder do estranhamento para movimentar a mente de quem lê. “Não posso dissolver o enigma porque é um enigma; se eu o dissolvesse, deixaria de ser enigma e então não poderíamos mais pensá-lo, e eu gosto de pensá-lo”, diz Alberto em O que fazer. Ou B pergunta em dado momento de A liberdade total: “Juntar coisas que não sabemos o que são para algo que não sei o que é?”.
Sim, aceitar o enigma como despertar da pergunta e da curiosidade. Sim, juntar peças que não entendo, lidar com o que me é estranho e não só com o que desejo e espero. Obras como a de Katchadjian, apesar de uma já larga tradição do estranho, do nonsense, do absurdo, sempre surgem com um sabor de novidade. Talvez porque nos desloquem de nossas expectativas, porque nos obriguem a elaborar outras dinâmicas de leitura, menos literais e menos familiares.
Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.