Literatura, Sociologia,

De dearest Flag para modesto sociólogo

As cartas trocadas entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre ganham uma importante edição

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Catorze anos mais velho que Gilberto Freyre, Manuel Bandeira nasceu no Recife em 1886, mas logo se mudou para o Rio de Janeiro com os pais. Desde então, só esporadicamente voltou ao Recife, embora a lembrança da terra natal nunca o tenha abandonado. Já Gilberto Freyre, pernambucano da safra de 1900, se fez estudante em universidades americanas e inglesas. Passou pelo exílio quando da queda do governo de Estácio Coimbra, ocasião em que recebeu inúmeros convites para viver como professor no exterior, preferindo, no entanto, retornar ao Recife, de onde comandou uma revolução nos nossos estudos sociais a partir da publicação, em 1933, de Casa-grande & senzala.

 A amizade entre Gilberto e Manuel, apesar da diferença de idade, se estabeleceu de imediato e se caracterizou por total simpatia, confiança e companheirismo. Uniu-os por cinco décadas o gosto pelas coisas do Brasil, o culto dos grandes poetas e prosadores, além das afinidades de temperamento. Tornaram-se amigos para a vida inteira.

A correspondência que trocaram acaba de ser publicada por Silvana Moreli Vicente Dias, a partir da tese que defendeu em 2009, vencedora do Prêmio Capes. Em seu excelente trabalho, ela não só recolheu e anotou o diálogo epistolar como agregou ao volume pertinentes ensaios de sua autoria, além de textos seletos de Freyre e Bandeira, minuciosa bibliografia, índice onomástico, e um caderno com cinquenta imagens (no qual, infelizmente, não há foto dos missivistas juntos).

Composta de 68 cartas e bilhetes, a correspondência — que consome apenas 143 páginas e se inicia com mensagem de Bandeira, de dezembro de 1925, agradecendo a inclusão de um poema seu no Livro do Nordeste, editado por Gilberto ­— mereceu 753 notas da organizadora, o que evidencia o rigor que imprimiu à tarefa. Pertinentes numa tese, muitas dessas notas correm, no formato livro, o risco de parecer longas em demasia. Teria sido recomendável reduzi-las, para deixar a correspondência menos asfixiada. Ainda assim o resultado é altamente meritório.

Louve-se também a decisão de reunir, na terceira seção, diversos textos de Bandeira e de Freyre, no empenho de contextualizar, de forma abrangente, não só o que se menciona na correspondência mas também o que une, humana e intelectualmente, os dois missivistas.

Imprecisões

No projeto algo ciclópico de abarcar todo o possível, a organizadora às vezes incorre em imprecisões, omissões e erros. Citemos alguns: na página 15, lê-se: “Ainda assim, não deixa de ser sugestivo que o escritor [Freyre], em 1973, publicasse um livro chamado Além do apenas moderno, prefaciado por José Guilherme Merquior”. O “prefácio” não existe na edição original, tratando-se de posterior decisão editorial, quando da reimpressão do livro em 2001.

Na página 69, nota 262, a organizadora nos induz a pensar que o último livro de poemas de Augusto Frederico Schmidt seria Aurora lívida, de 1958, mas é O caminho do frio, de 1964; na página 108, nota 473, Bandeira, do Rio, conta a Gilberto do sucesso das Memórias de Oliveira Lima, mas o leitor não é informado de que a publicação se deveu ao próprio Gilberto, na qualidade de primeiro diretor da Coleção Documentos Brasileiros, da José Olympio Editora. Já na página 118, nota 521, após referência à mesma editora, fala-se em “outro endereço, o do restaurante Cantina Batatais”; no entanto, a referida Cantina era apenas o restaurante da José Olympio, no mesmo prédio.

Certamente palatável numa tese, aqui causa estranheza o uso frequente, pela organizadora, de expressões de dúvida como “provavelmente”, “provável” e “possivelmente” em relação a pessoas cuja identidade é indiscutível. Assim, à página 113, carta 30, Bandeira se refere a José Oiticica, conhecido professor afeiçoado ao ideário anarquista, e a nota diz: “Manuel Bandeira provavelmente se refere a José Oiticica…”. O mesmo ocorre em relação a Mario de Andrade (!); Múcio Leão e o senador Antônio de Barros Carvalho, para só citar alguns exemplos.

Bandeira envia notícias de Villa-Lobos, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Prudente de Moraes Neto, Joanita Blank, Roquette Pinto, Jayme Ovalle, Ismael Nery, Vinicius de Moraes, José Olympio, entre outros. É ainda o autor de “Pneumotórax” quem conta, gostosamente, dos sopapos trocados por Sérgio Buarque de Holanda com Carlos Drummond de Andrade, que “engraçou-se” com sua namorada. “Seu poetinha de merda!”, esbravejou Sérgio.

Nessa correspondência singular, Bandeira costuma ser chamado por Gilberto de “Baby Flag”, ou “Dearest Flag”, e responde a este, em carta de 20 de março de 1934, com uma fórmula ao mesmo tempo afetuosa e irônica: “Adeus, modesto sociólogo. Ando com saudade de você”. 

Na carta de número 27, à página 103, Gilberto confessa, proustianamente, uma sensação que deve ter calado fundo em Bandeira, convocando a sua saudade, e que é, com certeza, um dos signos mais fortes da amizade que os uniu: “Quando penso que estou menos preso me acontece uma coisa sentimental que me prende a algum recanto ou bairro do Recife que estava na sombra e descubro encantos novos. Isto é uma cidade profunda. Muito profunda mesmo. Cada ano me traz o conhecimento de coisas inteiramente novas do Recife, mas que só podem ser sentidas e compreendidas, tendo-se a experiência das outras”. Por tudo que contam do Brasil e da cultura de seu tempo, essas Cartas provincianas merecem atenta e permanente reflexão.  

Quem escreveu esse texto

José Mario Pereira

É autor de José Olympio: o editor e sua casa (Sextante).

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.