A Feira do Livro, Literatura,

Armadilhas da memória

Em trama que envolve aborto e feminicídio, Claudia Piñeiro faz experimento ficcional sobre as versões possíveis de um fato

29maio2024 - 16h19 | Edição #82
A escritora argentina Claudia Piñeiro (Alejandra López/Divulgação)

A argentina Claudia Piñeiro vem se estabelecendo como uma das principais vozes da literatura latino-americana das últimas décadas. Essa presença se explica também por sua versatilidade — além de romances, Piñeiro também escreve livros infantis, peças teatrais e roteiros para televisão. Em Catedrais, lançado originalmente em 2020 e que chega ao Brasil pela Primavera Editorial, com tradução de Marcelo Barbão, Piñeiro volta ao campo que tem explorado em outras obras recentes: a violência, a investigação de crimes, o cruzamento de vozes e depoimentos, tudo aquilo que se convencionou chamar de literatura noir ou policial.

A autora parte da morte misteriosa e violenta de uma adolescente, Ana Sardá, num subúrbio de Buenos Aires, um caso que está há trinta anos sem solução — seu corpo foi encontrado queimado e esquartejado. O romance é dividido em sete partes, cada uma delas dedicada a um personagem, uma voz que apresenta sua versão dos fatos e do contexto do caso. Lía começa, seguida de Mateo, Marcela, Elmer e Julián, com um último capítulo reservado a Carmen, irmã mais velha de Ana e, por fim, um epílogo com uma carta do pai de Ana, Alfredo, que sofre de um câncer terminal e não quer morrer sem antes estabelecer a verdade sobre a morte da filha.

A narrativa não lida apenas com a morte de Ana, mas com a repercussão desse fato na vida das pessoas ao seu redor — nos dias e semanas logo depois do ocorrido mas também nas décadas posteriores, quando o evento é retomado. Essa oscilação faz com que o terreno narrativo se torne incerto e ambíguo, como no depoimento de Marcela:

Fui ao velório da Ana, queria me despedir. Estou me repetindo? Não entendia nada do que diziam a alguns passos de mim. Sentia como se estivesse em um pesadelo, cada frase que ouvia ao meu redor parecia uma loucura, me deixava com raiva, era incompreensível.

Nesse sentido, o romance de Piñeiro é tanto uma denúncia da violência contra a mulher — numa trama que envolve temas como o aborto e o conservadorismo católico — quanto um experimento ficcional sobre as armadilhas da memória.

Piñeiro demonstra habilidade na dinâmica de vozes e na montagem desse material heterogêneo

A seção dedicada a Marcela coloca esse problema em primeiro plano desde a epígrafe, uma frase de Luis Buñuel: “É preciso começar a perder a memória para se dar conta que é essa memória que compõe toda a nossa vida. Uma vida sem memória não é uma vida”. Os problemas de memória de Marcela são, em certo sentido, uma espécie de autorreflexão do próprio romance sobre seus principais temas, um modo da narrativa absorver, no nível dos personagens, seus próprios limites. Trata-se do ponto central da história, o cerne enigmático a partir do qual todos os fios derivam, já que a amiga estava com Ana nos seus últimos momentos de vida depois de um aborto clandestino. “Nunca consegui entender o que aconteceu depois que a vi morta no meu colo”, diz Marcela, e continua: “Ninguém pode morrer duas vezes, ninguém pode matar uma pessoa morta. Estavam procurando um assassino que não existia”.

Cada personagem vai, aos poucos, acrescentando elementos importantes para o desenvolvimento da história, elementos que operam como elos entre o pessoal e o histórico, entre aquilo que diz respeito ao individual e ao coletivo, simultaneamente. Um exemplo de Julián: “Nasci em uma família católica. Na minha árvore genealógica, por parte de pai, há vários padres, uma freira e até um bispo”. Outra passagem, de Carmen, está diretamente ligada à sua participação nos eventos que levaram à morte de Ana:

Trinta anos depois, se alguém ainda tiver reclamações, será porque não compreende os motivos que me levaram a agir como agi. As pessoas não toleram o horror, mesmo quando é inevitável, mesmo quando o horror é o preço necessário para proteger um bem maior.

A reflexão de Carmen deixa em aberto uma série de questões: quem é responsável pelo “bem maior” e por sua proteção? Como um ideal abstrato pode servir de régua para ações concretas que, às vezes, determinam a vida ou a morte dos indivíduos?

Moral e bons costumes

À medida que a história se desenrola, descobrimos que os personagens não revelam tudo que sabem quando entram em contato com outros, o que aumenta a oscilação de versões a que me referi antes. O capítulo de Elmer, o policial que cuidou do caso de Ana, é ilustrativo. Em determinado ponto de seu relato, ele declara: “Menti para Alfredo Sardá. Não em relação à morte da sua filha. Nunca menti em nenhum caso em que estive envolvido. Posso ter errado, mas mentido, nunca. Menti para ele sobre minha vida privada”. Surge aí um atravessamento recorrente na dinâmica de Catedrais, que pode ser desdobrado em dois níveis: em primeiro lugar, o cruzamento entre mentira e verdade, entre versões possíveis de um mesmo fato; mas também entre vida privada e vida social, que diz respeito àquilo que é feito para manter as aparências, para salvaguardar a moral e os bons costumes.

Piñeiro demonstra habilidade na dinâmica estabelecida entre as vozes e na montagem oferecida a partir desse material heterogêneo. Não se trata de um embaralhamento de pontos de vista de matriz vanguardista — na linha de autores como Virginia Woolf, William Faulkner ou Roberto Bolaño, no qual a oscilação trabalha em prol de um horizonte de incompletude. Ao contrário, a dinâmica de vozes em Catedrais, apesar dos desníveis deliberados ao longo da trama, visa uma completude, uma resolução, uma finalização do arco de compensação para o leitor, mais próximo do que observamos nas séries de televisão bem-sucedidas. A autora buscou também uma sustentação técnica ao seu projeto: acompanhou os seminários sobre delitos sexuais da criminologista argentina Laura Quiñones Urquiza.

Catedrais se enquadra numa rica vertente da literatura contemporânea dedicada à denúncia do feminicídio, da qual fazem parte obras como O invencível verão de Liliana, de Cristina Rivera Garza, Laëtitia, ou o fim dos homens, de Ivan Jablonka, e Garotas mortas, de Selva Almada. O romance de Piñeiro é tanto um acontecimento literário de sucesso — pela complexidade de seus personagens e habilidade do arranjo de vozes que apresenta — quanto uma peça de denúncia de temas que requisitam a atenção e o envolvimento do leitor.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.