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Nascida em Antígua e Barbuda, a escritora Jamaica Kincaid acumula prêmios por seus romances engajados e com traços autobiográficos

01jun2024 - 04h51 • 20jun2024 - 13h55 | Edição #82
A escritora Jamaica Kincaid posa em frente ao hotel King Edward, em Toronto (Canadá) (Lucas Oleniuk/Toronto Star via Getty Images)

Faz parte da mitologia acerca de Jamaica Kincaid a história de como ela aprendeu a ler, aos três anos, quando sua mãe, Annie Richards, mostrou para ela as primeiras palavras — não o alfabeto. É com esse episódio que ela começa muitas de suas conversas públicas, a exemplo da que ocorreu em agosto de 2021, em entrevista à escritora dinamarquesa Merete Pryds Helle, no Louisiana Literature Festival, na Dinamarca.

“Eu ia com minha mãe à biblioteca, e não entendia por que ela passava tantas horas interessada nessa coisa [os livros], que eu não sabia o que era, e não em mim. Então, ela me ensinou a ler para que eu gostasse dos meus próprios livros e a deixasse em paz”, conta Kincaid. “Minha mãe dizia as palavras em voz alta e, de alguma maneira, eu as entendia. Era como se saltassem das páginas e entrassem em mim. Obviamente, isso era minha imaginação.”

Também graças à mãe, Kincaid iniciou-se na simulação, quando começou a ir à escola e foi orientada por ela a dizer que tinha cinco anos, idade mínima para frequentar a instituição. “Essa foi minha primeira intersecção com a ficção: eu tinha três anos e meio, mas quando me perguntavam, dizia ter cinco.” Expressando–se em gestos contidos, voz suave, ela desvela esses saborosos episódios de sua primeira infância da mesma maneira que escreve seus textos, com um misto de inteligência, malícia e bom humor sedutores.

Quando se mudou para os Estados Unidos, Kincaid tinha a mesma idade da protagonista de ‘Annie John’

Nascida em Antígua e Barbuda e radicada nos Estados Unidos há quase seis décadas, a autora acumula mais de duas dezenas de trabalhos, entre romances, ensaios, contos e não ficção sobre botânica — uma de suas paixões. Lançado neste ano, An Encyclopedia of Gardening for Colored Children (em tradução livre, uma enciclopédia de jardinagem para crianças negras) é um livro infantil em colaboração com a artista estadunidense Kara Walker, no qual elas apresentam o mundo vegetal sob uma perspectiva onírica e decolonial.

Kincaid ainda acumula uma profícua carreira na imprensa, como repórter da revista The New Yorker de 1974 a 1996, além de colaborações em publicações independentes de vanguarda, como o extinto jornal The Village Voice e a revista feminista Ms., criada pela jornalista e feminista Gloria Steinem. Na academia, ela atua como professora de história africana e afro-americana em Harvard. E por seus romances com traços autobiográficos, ganhou prêmios como St. Louis Literary (2024), Prix Femina (2000) e PEN/Faulkner Award Fiction (1997 e 1984).O seu nome também costuma aparecer entre os cotados para o prêmio Nobel de Literatura.

Das experiências nem sempre poéticas entre Kincaid e sua mãe, a autora criou a trilogia com referências de sua infância, adolescência e vida adulta. As três fases inspiram respectivamente Annie John (1985) — seu primeiro romance, recém-lançado no Brasil —, o inédito Lucy (1990) — cuja personagem-título tem influências de Jane Eyre —, e o clássico A autobiografia da minha mãe (1996).

Figura materna

Publicado depois de dois livros de contos — At the Bottom of the River (1983) e At the Bottom of the Garden (1984) —, Annie John reúne todas as características que seriam aprimoradas em A autobiografia da minha mãe. A partir da descrição em primeira pessoa da protagonista, desenha-se a paisagem da capital antiguana St. John’s, sob a perspectiva de uma menina que, como Jamaica nos tempos de escola, destaca-se por ser inteligente e irascível. “Eu fazia piadas sobre Cristóvão Colombo e meus amigos quase desmaiavam de tanto rir”, disse em uma entrevista no Chicago Humanities Festival, em 2014.

A narrativa centra-se em sua apaixonada relação com a mãe, que também se chama Annie, abalada na pré-adolescência, quando a garota passa a ser tratada como uma “mocinha”. Entre o ódio, o amor e a culpa, Annie desconstrói a irrepreensível figura materna, ao compreender sua submissão ao marido, trinta anos mais velho, e questionar as convenções sociais que esperam dela “um bom casamento”. Pouco antes de deixar a casa dos pais (e o país), aos dezessete anos, Annie concebe o seguinte retrato de sua família:

Vendo como ele ficou doente e vendo como minha mãe agora precisa correr para cima e para baixo por ele, juntando as ervas e cascas que ele ferve na água, que ele bebe em vez do remédio que o médico receitou, eu pretendo não apenas nunca me casar com um velho mas certamente nunca me casar.

Em trânsito

Filha de outra (ou seria a mesma?) Annie, Kincaid tinha a mesma idade de sua heroína quando trocou Antígua e Barbuda pelos Estados Unidos, para trabalhar como babá em um subúrbio nova-iorquino. Ao chegar ali, ainda usava seu nome de batismo, Elaine Cynthia Potter Richardson, e estava sob a influência dos clássicos da literatura britânica que estudou na ilha caribenha.

“Quando tinha dez anos, como castigo para eu ficar quieta, o professor de francês me mandou ler Jane Eyre”, conta ainda na conversa com Merete Pryds Helle. “Depois desse livro, passei a me sentir uma pessoa especial. Diferente de outros alunos. Comecei a escrever minha Jane Eyre, sendo ora a autora, ora a própria Jane. Descobri que Charlotte Brontë tinha morado na Bélgica, onde passou frio e fome. Eu me sentia como ela, mesmo estando no calor de Antígua.”

Abandonar os estudos aos dezesseis anos foi uma decisão econômica: Elaine precisava ajudar no sustento de seus três irmãos mais novos. Carregada de ressentimentos e melancolia, ela logo percebeu que não estava destinada a “servir” — posição presumida às mulheres de sua cor, naturalidade e condição social. Assim, deixou o emprego como babá e voltou às letras, aos estudos e aos trabalhos temporários, decidida a se tornar escritora.

Em 1972, passou a se chamar Jamaica Kincaid. Jamaica, pois era como Cristóvão Colombo se referia às pessoas do Caribe; e Kincaid porque achou que combinava. Dois anos depois, entrou para a equipe de repórteres da The New Yorker e deslanchou como escritora, revezando-se entre romances, ensaios, poesia; explorando diferentes maneiras de tratar a jardinagem (My Favourite Plant: Writers and Gardeners on the Plants They Love fala das plantas preferidas de escritores e jardineiros) e fazendo experiências com a linguagem, como em Agora veja então.

‘A autobiografia de minha mãe’ é seu livro mais engajado em ideias decoloniais e feministas

Nesse romance de 2013, Kincaid desafia o leitor começando os parágrafos com variações das palavras “agora veja então” (“agora e então”; “ver então”; “então” etc.), em blocos imensos de texto, formados por frases labirínticas, que a todo momento mudam da primeira para a terceira pessoa, alternando o ponto de vista do narrador. O tortuoso percurso de leitura é tecido com rigor para refletir o fim de um relacionamento interracial, mesclando realidade e fantasia, exageros e distorções, que acentuam o racismo e o desprezo que o sr. Sweet sente por sua mulher, uma imigrante caribenha.

Por sua linguagem intrincada, o livro não alcançou a mesma fama de anteriores, como A autobiografia da minha mãe ou My Brother (1997). O primeiro é não só seu livro mais aclamado como um dos mais engajados em ideias antirracistas, decoloniais e feministas. Autobiografia é narrado por Xuela Claudette Richardson, cujo destino está traçado na primeira linha do primeiro capítulo.

Minha mãe morreu no momento em que eu nasci, e por isso durante toda a minha vida nunca existiu nada entre mim e a eternidade; às minhas costas, sempre um vento triste, sombrio.

“Quando escrevi isso, pensava que, dentro dessa personagem, havia o encontro de três povos: africano, europeu e dos nativos [de Antígua e Barbuda]”, disse Jamaica em entrevista a um programa de televisão estadunidense no lançamento do livro, em 1996. “Quando africanos nasciam nesta parte do mundo, a África morria para eles. Para os nativos, quando europeus nasciam em sua nação, suas terras, elas morriam para eles. E para os europeus, a Europa de certa maneira também deixava de existir.”

Sem previsão de lançamento no Brasil, My Brother aprofunda ainda mais as investigações de Jamaica sobre as relações familiares, ao tratar da morte de seu irmão Devon Drew, em 1996, aos 33 anos, em consequência do HIV — o livro foi finalista na categoria não ficção do National Book Award. Deve-se esperar, portanto, um pouco disso tudo em sua passagem pel’A Feira do Livro, cuja expectativa é alimentada pelas escassas entrevistas e a interessantíssima trajetória desta que é uma das grandes autoras contemporâneas.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.