Literatura,
A vergonha da mulher
Em romances recém-lançados no Brasil, Annie Ernaux e Lisa Ginzburg escrevem sobre a legitimidade do desejo feminino
01jul2023 | Edição #71No perfil de Annie Ernaux publicado nesta edição da revista, Rachel Cusk diz que a escritora francesa usa a vergonha como um mapa para encontrar a verdade em sua própria história. Onde a primeira estiver, em seu reverso estará a segunda.
Essa cartografia é facilmente identificável em um livro como O lugar: a vergonha como o fio que tece o conflito de Ernaux com sua classe de origem e com o fato de tê-la abandonado. É um sentimento socialmente louvável, quase um “pentimento” — italiano para “arrependimento”, nome dado ao processo de pintar uma obra nova por cima de outro quadro ou esboço. No caso de Ernaux, uma vida nova, que nascia por cima daquelas origens proletárias. “Escrevo para apagar uma traição”, disse a autora, parafraseando Jean Genet, citado na epígrafe de O lugar. O dito se aplica a outros em que sua condição de trânsfuga de classe é explicitada.
Mas a vergonha ganha outros tons, menos fáceis de assinalar, em obras como Paixão simples, mais recente título da escritora francesa a sair no Brasil. No breve relato, ela narra os efeitos que a aventura com A., um expatriado casado, tem sobre seus dias.
Paixão simples, mais recente título da escritora francesa a sair no Brasil, ela narra os efeitos que a aventura com A., um expatriado casado, tem sobre seus dias
Paradoxalmente, desapaixonada é um adjetivo que casa bem com sua escrita. A análise seca, calcada na descrição dos sentimentos e sensações que eles provocam, e econômica na adjetivação, cria a ilusão da objetividade que se persegue ao narrar o real.
Não só a franqueza de uma mulher emancipada diante do sexo oposto seria motivo para se envergonhar
Como também escreve Cusk, “Ernaux foi amplamente repreendida por suas leitoras feministas devido a esse retrato da dependência feminina da atenção sexual masculina”. O comentário resume boa parte da recepção que ainda se dá ao desejo feminino na literatura. No lado do “fogo amigo”, a mulher pode desejar, sim; tem um corpo, e com ele exerce sua existência no mundo. Mas só até o ponto em que o desejo não interfira na sua autonomia, no seu lugar de ser livre.
Contudo, quando Cusk fala em “dependência”, no trecho citado acima, o termo pode ser entendido como “vício”. Ernaux descreve os efeitos que a paixão tem sobre quem a ela se submete como se falasse de uma droga. A mulher apaixonada por A. vive todos os momentos que não fossem os encontros “no automático”. Sua vontade, seu desejo e sua inteligência, forças motrizes do cotidiano, estão voltadas tão somente para o que se relaciona a ele. Talvez seja a precisão da descrição o que perturba quem não quer se identificar com algo tão humano quanto perder a cabeça por outra pessoa.
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As notas de rodapé da autora, que trazem explicações de certas atitudes suas ou apontamentos exógenos aos fatos narrados, colaboram para conferir à dissecação dessa paixão um ar de estudo acadêmico. Ernaux, assim, brinca com a expectativa que o leitor possa ter de um texto sobre enamoramento sexual, esse estado febril de se ver rendido ao impacto do, ou com o, corpo do outro.
A vergonha que Ernaux vence para desentranhar a verdade é a da sujeição que as feministas condenaram. Vergonha de atitudes de abandono supostamente inadmissíveis em uma mulher madura no século 20 — Paixão simples é de 1992. Ela tem consciência de que sua condição pode parecer aberrante.
Mas não só a fraqueza de uma mulher emancipada diante do sexo oposto seria motivo para se envergonhar. A recepção também pode ser punitiva pelo lado daquela que, social e culturalmente, não pode ter desejo: a mãe. Ernaux, a mãe, expõe as preocupações com o olhar alheio e conta como as dispensou. Os filhos eram, na época dos fatos narrados, estudantes, e foram informados apenas do mínimo para não interromperem inadvertidamente seus interlúdios. Não podiam chegar sem avisar e não podiam, tampouco, se demorar caso ela avisasse que receberia seu amante.
Mas, para mim, teria sido preferível manter total segredo para meus filhos, do
mesmo modo que em outros tempos sempre escondia dos meus pais minhas paqueras e aventuras amorosas. Talvez porque quisesse evitar o julgamento deles. Mas também porque pais e filhos são os menos propensos a aceitar sem mal-estar a sexualidade dos que lhes são carnalmente mais próximos e, por isso, para sempre os mais interditos. Já os filhos se recusam a ver a evidência estampada no olhar perdido e no silêncio ausente da mãe, que se importa com eles tanto quanto uma gata louca para ir para a rua se importaria com seus gatinhos já crescidos.
Abandonar a família
A decisão de uma mulher de deixar as duas filhas, gatinhos ainda pequenos, para trás e viver com o homem que ama é o motor da trama de Cara paz, romance de Lisa Ginzburg publicado no país quase ao mesmo tempo que Paixão simples.
A decisão de uma mulher de deixar as duas filhas, gatinhos ainda pequenos, para trás e viver com o homem que ama é o motor da trama de Cara paz, romance de Lisa Ginzburg
Ao desistir da família que constituiu — o marido, Seba, e as filhas, Maddalena e Nina —, a argentina Gloria perde o convívio com as meninas, vedado pelo pai. Ainda crianças, elas sentem sua falta, mas não a deixam de amar. Antes, a idolatram. Já o pai, privado da esposa, vai viver em outra cidade, deixando as filhas, que se veem “órfãs sem sê-lo”, o que será o motivoda vergonha delas com relação à normalidade de seus colegas. O trabalho de Seba como fotógrafo de casamentos frisa com ironia o desajuste.
Sim, a família pertencia aos outros, não a nós. Seba também não tinha nada a ver com a festividade daquelas cerimônias, não participava, era só testemunha, imortalizava — alguém que sabe ver a alegria, retratá-la, porque está de fora, à margem. A tarefa de papai era capturar aqueles picos de harmonia e transformá-los em imagens […]. E só: o futuro dos casais já casados não lhe dizia respeito, nem a ele, nem a nós. A família — pensada como um projeto, um conceito, um ideal, um ponto de partida e de chegada — era uma forma distante, um desenho ao qual jamais teríamos pertencido. Uma brisa leve, talvez deliciosa, observada de longe, soprando sobre outras pessoas.
Maddi e Nina ficam aos cuidados de uma babá jovem e dinâmica, ela também estrangeira. A francesa Mylène provê às meninas uma estrutura para que cresçam em relativa paz. Entre as irmãs, se estabelece uma relação de simbiose tensa, cada qual reagindo de maneira particular à situação.
Cara paz é narrado em flashback por Maddalena, a mais velha, mulher feita, ela própria mãe de dois filhos, ela própria estrangeira, italiana vivendo em Paris. A rememoração tem início a partir do momento em que Maddi, como é chamada pela irmã, decide voltar a Roma. É uma decisão algo torturada, como se fosse um abandono da família, que tem lugar no momento em que Nina vive, nos Estados Unidos, uma crise conjugal.
Compõe-se, assim, um jogo de espelhos deformados, com as irmãs refletindo de maneira incompleta aspectos da personalidade dessa mãe idealizada, que elas têm poucas oportunidades de encontrar durante a infância e a adolescência. Seba não aparece muito mais, chegando de Milão em visitas de fim de semana. Sua presença, ao contrário da impressão fulgurante que Gloria deixa ao encontrá-las, é considerada invasiva pelas filhas.
É papel do romancista dotar seus personagens de experiências da realidade para que haja o que narrar
Assim posto, pareceria que estamos diante de uma trama na qual a atitude fundante da mãe de exercer seu desejo, de buscar um par, o também argentino Marcos, é premiada. Do ponto de vista de Maddalena, observamos o florescimento de Gloria depois da separação. Os desacertos sociais e afetivos pelos quais as filhas passam não são diretamente atribuídos à saída de cena da mãe, mas ao abandono ulterior pelo pai, de certa maneira vilanizado.
O desenrolar dos fatos, no entanto, deixa subjacente a percepção de que há algo de vício herdado e que a mãe tem responsabilidade quase atávica sobre o destino das filhas. “O que Nina faz é queimar etapas. Sempre queimou, no amor, mas também no resto”, escreve a narradora Maddalena. Em seguida, descreve os olhos da irmã, “os mesmos de mamãe”, verdes, “sedutores sem serem sonhadores”. Os seus são castanhos, um reflexo verde só se insinua na luz, “quando está claro”. Não têm o olhar que ela ambicionaria.
O olhar de Gloria e de Nina capaz de encarar até gravar cada detalhe e ter decidido o que fazer, como agir. Sempre achei que era mais míope, que sabia penetrar as coisas menos do que elas. Fortaleza e cofre. Proteger-me com minha carapaça, igual à tartaruga que lentamente continuava, todos os dias, a perlustrar amplas partes da nossa sacada.
Aqui cabe assinalar o tópico da fortaleza e da carapaça — em italiano, “carapace”, homófono do título original, Cara pace, como informa a tradutora, Francesca Cricelli, em nota. A ideia da carapaça é a da fortificação, da segurança que a irmã mais velha busca garantir à mais nova, como uma missão. Mas também transmite seu fechamento ao mundo e seu desejo de autonomia, de carregar, como a tartaruga de estimação, a proteção nas costas. Ginzburg peca por falta de sutileza na repetição dessa imagem, como se o leitor dependesse da insistência no jogo de palavras para compreender o mecanismo de defesa de Maddalena.
O romance, por fim, permite vislumbrar uma rachadura nessa casca, levando Maddi a entender na carne os mecanismos do desejo que lhe parecem tão perturbadores da paz. A forma como o romance coloca isso, no entanto, parece pouco convincente. Talvez porque a autora, por detrás da narradora, esteja pouco convencida da legitimidade do desejo feminino, afinal.
Explorar o abismo
Em seu texto, Rachel Cusk lembra palavras de Ernaux que buscam descrever as possibilidades da escrita como forma de processar o vivido. A escrita existe para “explorar o abismo entre a realidade assustadora do que acontece, no momento em que acontece, e a irrealidade estranha, anos depois, do que aconteceu”.
O que Ginzburg narra não é fruto do que ela própria viveu, à diferença do que escreve Annie Ernaux e de parte da prosa de sua avó, Natalia Ginzburg, adorada por textos memorialísticos como os de As pequenas virtudes. Mas é papel do romancista dotar seus personagens dessas experiências de realidade, para que haja o que narrar.
Como diz Cusk, “se ainda é difícil mulheres fazerem arte sobre sua própria vida é porque a feminilidade ainda não tem seu lugar garantido na cultura. Ernaux identificou a subjetividade imposta à voz feminina e fez dela sua arma, de certa maneira”. Faltaria que Ginzburg encontrasse, se não a honestidade, a verdade ficcional que daria um lugar mais franco à feminilidade de suas personagens.
Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.
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