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A primeira vez

Ao relatar um assédio na infância, Tatiana Salem Levy reflete sobre o silêncio e a solidão das mulheres na vida íntima

01jun2024 - 04h51 • 29maio2024 - 12h18 | Edição #82
A escritora Tatiana Salem Levy (Pedro Loureiro/Divulgação)

Era fim de 2015, noite de estreia de um famoso programa de culinária, desta vez em sua versão infantil. Crianças de nove a doze anos competiam no MasterChef Júnior. Em minutos, o assunto mais comentado do então Twitter, hoje X, era “Valentina”. Os comentários iam de “se tiver consentimento é pedofilia?” para baixo. Naquela noite, o corpo de uma menina de doze anos era o assunto mais comentado no Brasil.

A resposta nas redes veio dias depois com a hashtag #PrimeiroAssédio, criada pela ONG Think Olga. Comecei a ler, atônita, os posts de 140 caracteres: “meu #PrimeiroAssédio foi com um tio passando a mão em mim no Natal da família, eu tinha 8 anos”, “meu #PrimeiroAssédio aconteceu aos 4, quando um primo mais velho me obrigou a brincar de médico”, “aos 13, no apartamento de praia dos meus avós sou acordada por um amigo deles, bêbado, nu, de pé ao lado da minha cama #PrimeiroAssédio”.

O #PrimeiroAssédio de Tatiana Salem Levy tem dia exato: 3 de dezembro de 1989. Ela não é boa com datas, mas dessa não esqueceu. Tinha dez anos, corpo de menina, os seios apenas começavam a despontar. Foi em uma casa de praia e é a cena de abertura de seu novo livro, Melhor não contar.

Tomando sol à beira da piscina, sem a parte de cima do biquíni, ela foi desenhada por seu padrasto de mamilos à mostra, marcados com força, carregando na tinta. Depois desta, foram outras as investidas, suscitando nela sempre a mesma dúvida: melhor contar para a mãe? Tatiana Salem Levy conta que ali, no estranhamento dentro de seu próprio corpo em transformação, ela começava a se afastar de sua mãe. Seria a solidão da menina virando mulher chegando?

Heranças

No livro, acompanhamos também, de perto, a doença e morte dessa mãe, que aconteceria dez anos depois. Helena Salem, a jornalista que cobriu a Guerra do Yom Kippur e escreveu sobre os conflitos no Oriente Médio, foi, segundo a filha, a quarta da família, a caçula, a “menina não querida”. A avó, então, viu nela a possibilidade de viver uma liberdade da qual ela mesma não pôde usufruir. E foi assim, mais livre, que Helena criou suas filhas. Incentivando, inclusive, uma menina de dez anos a não usar a parte de cima do biquíni.

De sua mãe, Salem Levy herdou os diários que aparecem ao longo das páginas de seu livro, com idas e vindas no tempo. Mas será que não herdou também um pouco de sua história, só pelo fato de ser mulher? Ou um tanto da solidão que Helena tanto relata nas páginas? O livro de Tatiana é sobre a história dessas mulheres. Dela, delas, de todas nós. E é bonita a exposição — nunca fora de tom — que a autora faz dessas relações, seja nas cartas de sua mãe ou nas descrições das mulheres que compõem o mosaico de sua vida.

Além delas, a autora pega emprestada a história de Virginia Woolf, que se reunia com amigos no chamado Clube da Memória, onde trocavam escritos autobiográficos. Em uma dessas ocasiões, Woolf escreveu sobre ter sido abusada por seus irmãos mais velhos — informação ausente no mundo literário, que Salem Levy se diz espantada em desconhecer até então. Também me choquei, lendo os posts sobre #PrimeiroAssédio, ao me deparar com relatos de minhas melhores amigas sobre os quais nunca havíamos falado e ler um depoimento triste da minha própria mãe. Entre nós também era melhor não contar.

Na dúvida de não contar, a autora conta tudo que poderia ser confiado apenas a um diário com cadeado

Juntando histórias da vida de muitas mulheres, a autora pergunta se não devemos, nós mulheres, sempre escrever de forma pessoal. A vida da mulher é uma vida do dentro, da casa, do particular, e era, se contada, considerada uma literatura menor. Porém, uma de suas referências presente na epígrafe do livro, Annie Ernaux, veio provar o contrário. Levou em 2022 o maior prêmio literário do mundo, o Nobel, exatamente com a escrita da vida íntima.

Os diários, que surgiram entre os homens para narrar grandes aventuras e expedições, eram escritos apenas porque deveriam ser públicos, exatamente para trazer esses grandes feitos à tona. Já as mulheres os escrevem desde sempre não para serem lidas, mas para não serem lidas. Salem Levy subverte essa lógica. Na dúvida de não contar, conta tudo que poderia ter sido confiado apenas às páginas de um diário rosa fechado com um cadeado. Traz em seu relato mais íntimo não uma literatura menor, mas uma literatura imensa e cheia de coragem.

A autora também se pergunta se a escrita é cura. Se não como cura, a literatura tem sido usada, desde sempre, ao menos como libertação. É o caso, por exemplo, de Alba de Céspedes em seu Caderno proibido. Valeria, personagem do livro, compra o volume de capa preta que é proibido por dois motivos: primeiro porque não poderia ser vendido em uma tabacaria aos domingos; depois, porque passa a conter todos os anseios daquela mulher que queria ser mais do que esposa, mãe e dona de casa. Para Tatiana Salem Levy, e para nós, seu livro chega também como libertação. Podemos agora falar daquilo que era até aqui interdito.

Melhor contar

Aos vinte, quando perdeu a mãe, Tatiana Salem Levy se tornou mulher pela segunda vez. A cada golpe que sente da solidão, torna-se mais mulher. E talvez seu livro seja sobre isso: uma reflexão sobre a solidão da mulher, do nascimento à morte, e o papel da literatura nesse contexto.

Melhor não contar, podem achar que você deu em cima dele. Melhor não contar, imagine só o impacto que isso vai gerar na família. Melhor não contar, ele não quer ser exposto. Melhor não contar, pode ser que ninguém acredite. Melhor não contar, ela vai ficar triste. Melhor não contar, mas que bom que Tatiana Salem Levy contou. E conta ainda, em detalhes, o aborto que fez em Portugal, tenta entender sua preferência por homens mais velhos e de onde vêm as histórias que se repetem em sua vida. Se expõe, apesar de ter sido alertada: melhor não contar.

Quando nos encontramos nestes relatos é que deixamos de estar sozinhas. Quando ousamos, juntas, falar, a solidão fica um pouco menos pesada. Com esse belo livro no mundo nos agarramos a ele com a certeza de que não estamos sozinhas. A história é de Tatiana Salem Levy, mas poderia ser de qualquer uma de nós.

Quem escreveu esse texto

Paula Sacchetta

É documentarista.

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.