Flip, Literatura,
A mulher de trinta (e tantos) anos
Em romance que mistura ficção e autobiografia, Sheila Heti questiona a predestinação naturalizada da maternidade
01jul2019 | Edição #24 jul.2019De Jane Austen e Balzac a Tolstói e Machado de Assis, a sexualidade feminina se tornou um dos assuntos mais sondados, debatidos e polemizados ao longo da história do romance, a ponto de Flaubert ter sido acusado judicialmente pela “ausência de moralidade” de seu célebre Madame Bovary. O escândalo de Emma Bovary, ao que parece, não consistiu tanto na prática em si do adultério, mas na falta do arrependimento que marca de maneira singular a postura da personagem — algo revelador dos mecanismos de poder envolvidos em tal questão.
Seja pelo estabelecimento normativo dos papéis que as mulheres deveriam ocupar na sociedade, seja por uma focalização da narrativa nos desejos sexuais femininos, seja ainda pela investigação das mazelas da instituição do matrimônio, pilar da sociedade burguesa, a história das representações femininas praticamente se confunde com as transformações sofridas pelo gênero literário romanesco.
O romance Maternidade, da escritora canadense Sheila Heti, parece mirar em tal tradição na medida em que a narradora se dedica a indagar, em tom crítico e existencial, a condição e o destino naturalizados da mulher como mãe — mas não sem certas contradições. A autora, de fato, se propõe a desafiar os estereótipos em torno da maternidade em perspectiva honesta e, mais do que isso, corajosa — e também com eventual autoironia, expondo suas próprias fragilidades e sentimentalismos e por vezes tropeçando nos impasses que ela própria promete suspender.
Ao mesmo tempo, o que não deixa de ser sintomático, não se trata exatamente de um romance, mas de uma “ficção” com elementos autobiográficos que mistura também procedimentos do ensaio e do diário, assim como relatos de sonhos, contando ainda com fotografias do acervo pessoal da escritora, esse cacoete da literatura contemporânea. Digo que é sintomático pois, sobretudo nesse caso, indagar a condição do gênero feminino (gender) passa por suspender certas regras e padrões do gênero romance (genre), o que não chega a ser obviamente uma grande novidade para ninguém.
A narrativa de Heti não se exime, inclusive, de passar por debates contemporâneos espinhosos em torno do assunto, como o controle biopolítico do corpo da mulher por meio da proibição do aborto e o significado da procriação entre as mulheres judias após o Holocausto. “A vida de uma mulher dura mais ou menos trinta anos. Parece que, durante esses trinta anos — dos catorze até os quarenta e quatro — tudo precisa ser feito”, provoca.
Prazo biológico
Tal como a própria Heti, a narradora de Maternidade se apresenta como escritora e possui seus quase quarenta anos, prazo biológico que faz disparar coações variadas a seu redor — e muitas interrogações sobre ela própria, sobretudo no que diz respeito a ser ou não mãe. Afinal, diz a narradora, a certa altura: “Sendo mulher, você não pode simplesmente dizer que não quer filhos. Você precisa ter algum grande plano ou ideia do que você vai fazer em vez disso. E é bom que seja algo incrível”. Em outro momento, questiona que, por não ser mãe, talvez nem seja “uma mulher de verdade”. Entre uma questão e outra, ela sabe perfeitamente que, conforme alerta sua médica, “precisa decidir agora”.
‘Sendo mulher, você não pode simplesmente dizer que não quer filhos. Precisa ter algum grande plano ou ideia do que você vai fazer em vez disso’
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Algumas das muitas interrogações de Maternidade são expressas ao longo da narrativa por meio de um jogo de adivinhações que consiste em lançar perguntas a três moedas (ou à própria consciência, ou ainda ao coração) e que são sempre respondidas, aleatoriamente, com um “não” ou um “sim”. O procedimento é explicado em nota de abertura como uma técnica usada na consulta do I Ching. Em nota posterior, a narradora faz questão de explicar o que nem precisaria ser explicado: “Todos os resultados dos lançamentos de moedas lançadas resultam do lançamento de moedas de verdade”. Que diferença faz?
Seja como for, o procedimento interessa menos pelas respostas e mais como uma espécie de justificativa das centenas de perguntas que são dirigidas ao acaso — que sulcam os firmes e às vezes divertidos argumentos da narradora com crises, dúvidas, problemas e inseguranças. Uma delas diz respeito à própria mãe, que lhe apresenta o seguinte argumento: “Não há ninguém que faça eu me sentir tão velha [quanto você]”.
A maternidade é apresentada também sob o signo da negação — dilema que a narradora define como o nascimento de um “filho nunca-nascido”. Em outras palavras, quanto mais pensa sobre o filho que não vai ter, maior será o fantasma da maternidade. “Por mais que eu não consiga me ver tendo um filho, é estranho imaginar que eu não terei um”, escreve, e ainda questiona por que a experiência de não ter um filho, em geral, não é concebida como uma escolha: “Temo que, não tendo filhos, não parece que você fez uma escolha, ou que você está fazendo qualquer coisa além de continuar — à deriva. Talvez as pessoas que não têm filhos sejam vistas como aquelas que não progridem, mudam e crescem”.
As experiências de outras mulheres, mães ou não, entre amigas, parentes e desconhecidas, são também objeto de ruminação da narradora. Como boa neurótica obsessiva, ela esmiúça e mina a questão sob todos os aspectos e pontos de vista. Nesse sentido, o livro pode interessar tanto às mulheres que se encontram em situação semelhante e podem se identificar com as questões de Heti, quanto também aos homens que, em ignorância completa ou parcial do assunto, podem encontrar nesta leitura uma chance de pensar sobre o tema.
Mais do que um libelo contra a maternidade, a narrativa aposta na exposição (obsessiva, hiper-racional, eventualmente delicada, assim como repleta de contradições e argumentos crassos) dos caminhos mais ou menos tortuosos de uma experiência de recusa da maternidade, o que faz do livro necessariamente mais intenso, complexo e turbulento, mas também um pouco penoso e lacrimoso demais.
Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.
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