Literatura,
A literatura segundo Coetzee
Ensaios críticos do autor sul-africano trazem a escrita afiada do vencedor do Nobel voltada a outros escritores e suas obras
01jan2021 | Edição #41 jan.2021Escrever a crítica de um romance canônico é tarefa ingrata. O que haveria a dizer, por exemplo, sobre Madame Bovary, uma das obras mais lidas, e debatidas, da história da literatura? A grandeza do maior clássico de Flaubert, entretanto, demandará, a cada reedição, sua contrapartida crítica. E resenhas e introduções seguirão multiplicando-se ad infinitum, com graus tão variáveis de interesse quanto há livros nas estantes da Amazon.
Na introdução a uma edição argentina de 2013, o crítico começa assim: “Madame Bovary conta a história de uma desimportante mulher do interior da França que, entediada com o casamento que a uniu a um desajeitado médico de província, embarca em duas ligações extraconjugais, nenhuma das quais acaba bem. Para satisfazer seu gosto por coisas finas, ela se endivida além do que pode e depois, desesperada, toma veneno e se mata”. Sinopse digna da Netflix, diria o leitor — mas, além do (irônico) primeiro parágrafo, há um ensaio profundo, no qual o prefaciador entrega de vez o cadáver para depois delongar-se com delícia nos detalhes do feito.
Afinal, ele não precisa provar nada — foi convidado a dar seu pitaco explanatório do alto da autoridade conferida por seu nome. O público que o lê no jornal ou no prefácio do livro ou não leu a obra ou apenas arranhou sua superfície. A crítica é consolo, sucedâneo, subterfúgio. Mas também é um convite. Então por que não aceitar a mão estendida — sobretudo se for do vencedor do Nobel de Literatura John Maxwell Coetzee?
E o convite não é um engodo: ele entrega o que promete. Sua crítica é direta, às vezes didática em seu afã biográfico e comparativo, mas nunca arrogante. Com Coetzee, Flaubert deixa de ser o escritor “clínico”, que dissecara a mulher e sua sociedade, sua língua e seu tempo com um implacável bisturi, para se tornar um homem perdido em sua própria obra em movimento, dissecado também ele.
“Madame Bovary c’est moi”, teria declarado Flaubert. Mas o que essa frase nos diz dele, de sua obra, da literatura, além de tudo o que já foi escrito? Coetzee traduz a possessão do autor pela obra. “Talvez só que ele se pôs todo na criação de Emma, que no calor extremo da criação a identidade individual do artista é consumida e monopolizada por seu lado criador.” Ela “se torna muito maior à medida que, efetivamente, se apodera do autor e se converte nele”, escreve em Ensaios recentes.
Ele analisa as obras como se desmontasse uma máquina que, aos olhos dos outros, funciona sozinha
Então mergulhamos na análise: o que faz de Flaubert escritor dos escritores não é a crítica à burguesia, mas o talento para tratar questões existenciais “como problemas de composição”: “Qual seria a melhor linguagem, a técnica narrativa ideal, para contar a história de Emma, uma linguagem e uma técnica que não diminuíssem nem inflassem a importância da personagem, que lhe permitissem argumentar em sua defesa” sem “a transformar num mero fantoche das opiniões de seu autor?”. Flaubert, segundo Coetzee.
Engrenagens
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Para certo consenso intelectual, ler a respeito de uma obra em nada se compara ao prazer do próprio romance. Mas quem conseguiria esgotar as listas de melhores livros numa vida? E por que negar o prazer peculiar de ler sobre livros nunca lidos? A vida do escritor se torna uma história, suas narrativas ganham vida nas linhas do crítico — sobretudo se ele for um dos maiores autores da atualidade.
De Goethe a García Márquez, de Hölderlin a Faulkner, de Tolstói a Beckett: um a um, grandes nomes do cânone literário têm sua obra escrutinada pelo sul-africano. Publicados entre 2000 e 2017, como introdução a reedições ou resenhas para a New York Review of Books, os 44 ensaios se dividem nos dois volumes que a Carambaia lança simultaneamente: Mecanismos internos e Ensaios recentes.
Coetzee sempre escreveu para subverter as regras do jogo. Ainda que de leitura acessível, seus romances colocam em perspectiva a essência mesma do gênero. Quanto do autor existe no narrador? Quanto de autobiografia há na ficção que escancara processos de escrita? Nesses ensaios, porém, não se lê uma linha sobre a obra de Coetzee. Se o leitor procura confissões sobre seu processo de criação, a leitura será em vão.
O que o crítico faz nesses textos é fagocitar cada autor no que a literatura pode lhe dizer de si própria. Ler seus ensaios é visitar a melhor literatura mundial tendo como cicerone um profundo conhecedor do romance contemporâneo. Mas não se trata de hagiografia: Coetzee é implacável, apontando “defeitos” até em obras de autores aclamados.
Seu foco, porém, é a genialidade das engrenagens por trás de um livro. Ele analisa as obras como se desmontasse uma máquina que, aos olhos dos outros, funciona sozinha, mas não: ela tem um criador, segue procedimentos cujas entranhas se pode espiar e cuja lógica merece a atenção. O aspecto anedótico também é farto. Num dos ensaios, descobrimos que Italo Svevo teve aulas de inglês com um certo James Joyce, bem antes de parir A consciência de Zeno.
O que o crítico busca são “as fontes mais sombrias e mais pessoais de sua compulsão literária”. Assim, Coetzee mostra um pouco de sua própria fixação por Samuel Beckett, que ganha um ensaio no primeiro volume e quatro no segundo. Cada autor tem expostas suas razões e obsessões, em artigos que não fogem do “biografismo” temido por parte da crítica. Coetzee usa elementos “subjetivos” — entrevistas, cartas, filiações —como material de análise. Cotejando, escreve ensaios equilibrados entre o erudito e o popular, que aproximam o leitor.
Para quem não leu Sebald, por exemplo, e ignora a história de seus personagens, toca ler que “o tom de suas vidas é definido por uma sensação difícil de articular de que elas não fazem parte do mundo e de que os seres humanos em geral talvez não devessem estar aqui”. Coetzee desfia o tecido da criação sebaldiana, da gestação dessa melancolia profética — para ele, o cerne de suas obras — até o olhar precipício abaixo.
Por meio desse processo cirúrgico — o brilho do bisturi denuncia o procedimento, mas o crítico nos sorri, crente no poder da literatura —, Coetzee nos desvela uma série de mundos coesos, universais e únicos, nos quais nos convida a entrar.
Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.
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