Literatura infantojuvenil,
Um livro é um livro é um livro
Obra infantil de Gertrude Stein explora o ritmo das palavras e sua capacidade de ganhar novos sentidos
01out2020 | Edição #38 out.2020Em 1939, quando foi publicada a primeira edição do livro O mundo é redondo, de Gertrude Stein, a editora Young Scott Books advertiu: se os leitores tiverem dificuldade para acompanhar o texto, devem lê-lo mais rapidamente; e, se ainda assim tiverem dificuldade, devem lê-lo mais rapidamente ainda. Eu experimentei e posso dizer que é mesmo verdade: ler mais rapidamente, no caso desse livro, é um jeito de entendê-lo melhor. Talvez porque esse seja um texto que corre na mesma velocidade com que os pensamentos correm dentro da cabeça — principalmente quando é a cabeça de quem costuma pensar sobre tudo.
Se você ficou na dúvida, experimente também: “Uma vez o mundo era redondo e você podia dar voltas e voltas ao redor dele. Por todo lado havia um lado e por todo lado lá havia homens mulheres crianças cachorros vacas porcos selvagens coelhinhos lagartos e animais. Era assim que era. E todo mundo cachorros gatos ovelhas coelhos e lagartos e crianças todos queriam contar para todo mundo tudo sobre essas coisas e eles queriam contar tudo sobre eles mesmos. E então havia a Rosa”.
Esse é o começo de O mundo é redondo. Nas páginas seguintes, em 34 capítulos curtos, lemos as aventuras da Rosa — que se chama Rosa mas cuja cor favorita é azul —, do seu primo Vini e dos cachorros Pepe e Amor. Lemos, em muitas palavras repetidas, poucas vírgulas e quase nenhum ponto de interrogação, a história de Leonel, o leão, as canções que a Rosa canta e a sua jornada subindo uma montanha alta e clara e azul, nesse mundo que durante todo o tempo continua sendo simplesmente redondo.
Mas é difícil dizer que o livro é sobre esses assuntos que acabei de listar. Essa obra, na verdade, é sobre outras coisas. Talvez mais do que sobre coisas, é um livro sobre palavras e a mania que elas têm de puxar umas às outras quase por conta própria. É sobre a tendência das palavras de ganharem outros e novos sentidos, à medida que se repetem e se acumulam.
“Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”, Gertrude Stein escreveu pela primeira vez em 1922, no poema “Sacred Emily”. É o seu verso mais famoso e mais citado. Um verso que, como o mundo, também é redondo — porque ele não para de puxar a si mesmo. E que criança já não fez exatamente isso? Repetir a mesma palavra sem parar, cada vez mais rapidamente, e ver como ela aos poucos se esvazia de sentido. A palavra, repetida assim, vai virando cada vez mais uma coisa. Stein chegou a dizer, numa conferência: “Acho que nesse verso a rosa é vermelha pela primeira vez na poesia inglesa em cem anos”.
Um nome flutuante
Já a Rosa de O mundo é redondo se pergunta se ela teria sido Rosa se não se chamasse Rosa. “E será que ela seria Rosa se ela tivesse tido uma irmã gêmea.” E grava em um tronco de árvore — de uma árvore redonda — aquele mesmo verso que repete o seu nome. Talvez essa personagem Rosa (palavra de que Gertrude Stein gostava tanto) não seja bem uma pessoa, e sim só um nome, um nome flutuante. Ou então só uma cor. Ou uma flor. Mas, por outro lado, a Rosa do livro foi inspirada numa Rosa real: era a filha do vizinho da autora em sua casa de verão nos Alpes franceses. (O cachorro Pepe também existiu — o de verdade era um chihuahua mexicano que Stein ganhou de presente.) A dedicatória do livro é justamente para essa menina — “uma Rosa francesa”, como ela diz. Mas essa dedicatória, que está dentro de um círculo feito de “a Rose is a Rose is a Rose”, não consta na edição da Iluminuras, traduzida por Luci Collin e Dirce Waltrick do Amarante.
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A própria história do livro, aliás, é tão interessante quanto o texto em si. A editora Young Scott Books selecionou grandes escritores para encomendar livros infantis. Ernest Hemingway, John Steinbeck e Gertrude Stein foram convidados, mas só ela aceitou, dizendo inclusive que já estava terminando de escrever um livro para crianças. Stein se correspondeu com o ilustrador Clement Hurd para a primeira edição, e pediu que o livro tivesse as páginas cor-de-rosa e as letras azuis — a cor favorita da personagem. São detalhes que, para a autora, faziam toda a diferença. É que esse é um livro feito não só de sentidos, mas também de cores, de sons, ritmos e velocidades. É um livro que gosta de ser coisa.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.
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