Laut,

Um ato solitário

Pesquisadora mescla disciplinas para investigar mulheres acusadas de, sob a influência do estado puerperal, matar os próprios filhos

26fev2024 | Edição #79

Uma mãe mata um filho. O que acontece depois? E o que veio antes? Fruto do doutorado de Bruna Soares Angotti, Da solidão do ato à exposição judicial: uma abordagem antropológico-jurídica do infanticídio no Brasil se debruça sobre acusação, defesa e julgamento de mulheres acusadas, na legislação brasileira, de matar sob a influência do estado puerperal o próprio filho, durante o parto ou logo após.

Longe de ter a morte como elemento central, o livro trata, antes de tudo, da vida — de muitas vidas. Em especial, da vida de mulheres que, gestantes, puérperas, muitas delas já mães ou futuras mães, estão unidas a tantas outras pela experiência da solidão como constitutiva da existência feminina em uma sociedade que invisibiliza grande parte de suas dores, afetos, narrativas e vivências. 

A etnografia de Angotti é fascinante e potente. Formada em direito e antropologia, ela produziu uma pesquisa etnográfica de qualidade e fôlego, especialmente por suas escolhas metodológicas, de viés multidisciplinar, colocando em diálogo campos do conhecimento e em uso ferramentas distintas. Ao lado de outras pesquisas empíricas sobre o sistema de justiça, essa contribui de forma decisiva para a consolidação da antropologia do direito no Brasil, em um texto acessível para iniciantes e iniciados. 

Além de pesquisadora afiada, a autora é uma acadêmica sofisticada e com o dom da escrita, brindando leitores com uma poética analogia que aproxima suas interlocutoras de carne, osso e sangue com as infanticidas famosas de Bertolt Brecht (Marie Farrar); Johann Wolfgang von Goethe (a jovem Gretchen, de Fausto); e Mary Ann Evans, sob o pseudônimo de George Eliot (Adam Bede).

Métodos

Dividido em quatro capítulos, o texto se inicia com o percurso da própria autora e de como a temática a atravessou, enquanto estudiosa de penitenciárias femininas brasileiras. No primeiro capítulo, “Lugares e arredores: o mapa da pesquisa”, a autora compartilha lugares por onde passou, casos, documentos, sessões de júri e relações profissionais e de afeto que tornaram possível sua produção. Como pesquisadora, Angotti se permitiu “ser afetada”, nos termos propostos por Favret-Saada, assumindo os riscos de “ver seu projeto de conhecimento se desfazer”.

No diálogo entre direito, antropologia e medicina, ela não privilegiou nenhum desses saberes, levando-os igualmente a sério. Mais do que isso, experimentou diferentes métodos de pesquisa, valendo-se da análise documental de sete processos judiciais na íntegra; da investigação jurisprudencial de 179 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferidos entre  2005 e 2015; de entrevistas formais e conversas informais com profissionais do sistema de justiça e pessoas envolvidas nos casos, inclusive as mulheres acusadas; da observação de três sessões de julgamento no Tribunal do Júri envolvendo mulheres acusadas da morte de seu recém-nascido e, ainda, do estudo bibliográfico da doutrina médico-legal e penal que trata de infanticídio no Brasil em contraste com a literatura anglófona, pouco conhecida por aqui, que usa o termo “neonaticídio”, desconsiderado pelos autores nacionais.

Pesquisadora afiada, Angotti aproxima suas interlocutoras de carne, osso e sangue com infanticidas famosas da literatura

No segundo capítulo, “Matar o ‘próprio filho’: desafios classificatórios em meio a complexidades biopsicossociais”, a autora faz um balanço da literatura que deu os contornos jurídico-científicos à prática, categorizando as mortes chamadas de filicídio e situando o tipo penal acolhido no Brasil. Convém destacar como cientificidade e moralidade parecem andar juntas, como Angotti demonstra. Suas análises mais interessantes são justamente aquelas que destacam a complexidade dos casos, a improdutividade de respostas meramente penais que não contemplam a ampla gama de elementos da questão e os aspectos biopsicossociais que se colocam na temática do infanticídio. 

A palavra “solidão é, para a autora, o grande ponto de convergência dos casos por ela avaliados — e que parece tocar no elemento central da experiência feminina subalternizada, silenciada, que aproxima as mulheres constituídas penalmente como infanticidas da experiência de muitas outras no país. A solidão da mulher negra, a da mãe solo, a da mulher sobrecarregada com o cuidado emocional dos familiares e dos filhos, a das mulheres preteridas no mercado dos afetos parecem estar todas entrelaçadas à medida que os casos são descritos. 

Mães e filhos

A ideia de filiação imposta pelo saber jurídico é bastante problematizada, tornando o diálogo entre direito e antropologia profícuo. Enquanto a antropologia lida com os sistemas de parentesco de maneira contextual, e não universal, e não reduz o papel social da mulher e da mãe à ideia de descendência ou consanguinidade, o direito lida com os casos estabelecendo uma relação estanque e biológica entre a mulher que dá à luz e a criança que nasce, o que desafia a compreensão dos eventos sob a perspectiva das mulheres. Estas, por vezes, não reconhecem os recém-nascidos como seus “próprios filhos”.

No capítulo 3, “O que é estado puerperal: saberes em jogo”, Angotti problematiza a relação entre o saber médico e o jurídico, explicitando como profissionais do direito instrumentalizam o conhecimento especializado de modo seletivo e arbitrário.

Na medicina especializada (psiquiatria ou obstetrícia) a categoria “estado puerperal” não existe. Apesar disso, o sistema de justiça instrumentaliza o conceito na abordagem dos casos concretos, reduzindo-o aos manuais de medicina legal. Nas palavras de Angotti, “o termo estado puerperal é, portanto, uma construção jurídica revestida de cientificidade”, a partir da qual até mesmo a temporalidade do evento “morte” pode ser problematizada. A morte “logo após o parto” seria dez minutos depois, como afirmam alguns manuais e especialistas, ou em quarenta dias (que é o tempo do puerpério, também conhecido como resguardo ou quarentena), como afirmam outros? 

Tidas como ‘cruéis, frias e calculistas’, tiveram seus processos profundamente afetados pelo juízo moral e particular de agentes

Assim, o saber jurídico se apropria do saber médico de forma a moldar o percurso do processo e conduzi-lo para o resultado escolhido. Os agentes do sistema de justiça instrumentalizam o estado puerperal como crença, já que sequer há convergência médica. Alimentados pela lógica do contraditório, manuseiam o conceito se valendo da flexibilidade interpretativa e do uso seletivo da expressão, que acaba, de um lado, por esvaziá-la e, de outro, torná-la um fenômeno no qual se acredita ou não, entre os “adeptos” e os “não adeptos” da crença. 

No capítulo 4, “Inocentes ou culpadas: a construção judicial de mulheres acusadas de infanticídio”, Angotti descreve como o Poder Judiciário lida com essas mulheres, acusadas de matar ou de tentar matar o filho recém-nascido. Aqui, verificamos que o infanticídio é apenas uma entre as diversas possibilidades, ou talvez escolhas, dos operadores do sistema de justiça para abordar esses casos.

A autora expõe as tantas interpretações jurídicas possíveis conferidas aos casos concretos para apontar duas questões. Primeiro, o direito lida com “moralidades situacionais” que alteram os juízos particulares dos agentes, permitindo que mulheres que tiveram a mesma postura recebessem tratamentos muito variados. Segundo, existe um cardápio amplo de percepções sobre o que seria o estado puerperal. Do ponto de vista moral, “dar à luz” e “ser mãe” são noções usadas à la carte pelos profissionais do sistema de justiça a partir de percepções pessoais e biografias. Foram encontradas trinta maneiras distintas de denunciar casos semelhantes, resultando em desfechos totalmente diversos, que variam entre arquivamentos, desclassificações, absolvições e condenações em diferentes regimes e temporalidades.

Chama a atenção que os desfechos têm mais relação com o que está fora do processo do que com a qualidade das provas processuais e/ou a atuação profissional dos agentes, abalando a crença idealizada dos juristas de que o devido processo legal é uma garantia dos cidadãos contra eventuais arbítrios estatais em um Estado Democrático de Direito.

Solitárias

As mulheres levadas ao Tribunal do Júri apresentam histórias de vida e fatos muito próximos e semelhantes, mas juridicamente foram tratadas de modo desigual. Desde as denúncias, que ora se referem a infanticídio, ora a aborto, ora a homicídio triplamente qualificado; até as condenações, que ora extinguem a punibilidade, ora condenam a penas que vão de oito meses a dezoito anos de detenção.  

Nos júris a que foram submetidas, como mostra Angotti, essas mulheres se depararam com profissionais que a depender da religião, história de vida, laços familiares, viés mais ou menos punitivista ou garantista, envolvimento pessoal com o caso, juízo moral e, acima de tudo, crença (ou não) na existência do estado puerperal decidiram os desfechos dos processos. Foram tratadas como “cruéis, frias e calculistas”, ou dignas de pena, por serem “vítimas de um sistema falho”, afetando, de forma profunda, os processos e as histórias dessas mulheres. 

Podemos pensar que a solidão do ato de parir se encontra com a solidão daqueles que julgam o “crime”, porque, no fundo, os fatos, as provas, os processos e as tomadas de decisão são acontecimentos e eventos subjetivos, individualmente experimentados e moralmente situados, e que ilustram o quanto as fronteiras morais, os ideais legislativos e os processos judiciais se entrecruzam em nosso sistema de justiça, que não tem nada de neutro, imparcial e despersonalizado.

O cuidado que recai quase exclusivamente sobre a mãe, acerca do qual reflete Vera Iaconelli em Manifesto antimaternalista (Zahar, 2023), a sobrecarga emocional descrita por Valeska Zanello em Saúde mental, gênero e dispositivos (Appris, 2018) e mesmo as práticas de negação e retirada de filhos de mulheres consideradas inaptas para a maternidade parecem refletir, dialogar e atravessar as múltiplas maneiras de viver, negar e impedir maternidades (im)possíveis, tornando esta obra tão atual e necessária. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Janaína Dantas Germano Gomes

Bárbara Lupetti Baptista

Matéria publicada na edição impressa #79 em março de 2024.