Laut,

Políticas do descaminho

Pesquisadores apontam os efeitos da reeleição de autocratas e defendem sua responsabilização penal

01jun2023 | Edição #70

Com título discretamente evocativo ao “caminho da servidão” de Friedrich Hayek, O caminho da autocracia integra uma linhagem de esforços de radiografia da atualidade, que buscam apreender a erosão da democracia mundo afora, detectada desde a crise de 2008. Mas se o economista austríaco ultraliberal redigiu seu libelo antissocialista quando a social-democracia e o Estado de bem-estar davam seus primeiros passos, o momento atual é quase oposto: as redes de proteção são desmanteladas em nome da competitividade e da austeridade enquanto novas lideranças autoritárias prometem renascimentos nacionais e o fortalecimento de um modelo familiar restrito.

O caminho da autocracia conta uma parte dessa história, com um recorte que abarca o Brasil dos últimos anos. Elaborado por pesquisadores do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut), fundado em resposta à chegada de Bolsonaro ao poder para “monitorar as manifestações do autoritarismo e de repressão às liberdades”, o opúsculo atualiza dados do relatório homônimo publicado em 2022, acrescentando a discussão dos eventos pós-eleitorais, o mais recente sendo o famigerado “8 de janeiro”.

O Brasil é comparado principalmente a um grupo de Estados que também possuem, ou possuíam, instituições democráticas sólidas, além de terem uma figura individual, o autocrata do título, que tenta concentrar o poder. São eles a Hungria de Viktor Orbán, a Polônia de Andrzej Duda, a Turquia de Recep Erdogan, a Índia de Narendra Modi e os Estados Unidos de Trump. Para as comparações internacionais, o trabalho se baseia em documentos emitidos nos últimos anos por organizações não governamentais como o Varieties of Democracy (V-Dem), o World Justice Project, a Freedom House e a Artigo 19. No caso brasileiro, as informações são do próprio Laut.

O livro é organizado em quatro partes. A primeira traça o panorama das teses sobre o atual enfraquecimento da democracia. Os autores discutem que haveria “ondas” de democratização e autocratização. Por esse prisma, o último século e meio teria passado por períodos de avanço democrático (como a expansão da franquia eleitoral antes de 1914 e a social-democracia do pós-guerra) e retrocesso autoritário (como as vitórias fascistas dos anos 30 e a implantação de ditaduras no que à época era chamado de Terceiro Mundo). Após mais uma série de democratizações, referente à queda da Cortina de Ferro, hoje atravessaríamos a terceira onda autocrática, em que o autoritarismo se espalha sem derrubar governos, agindo insidiosamente por dentro das instituições que caracterizam o sistema democrático, para que se tornem instrumentos de opressão.

Em 2018, mais de 2,5 bilhões de pessoas viviam sob regimes classificados como autocráticos

A segunda parte, mais extensa, traz os casos de ataques à sociedade civil e suas liberdades nos países sujeitos ao avanço da autocracia. As ocorrências são classificadas entre educação, segurança pública e espaço cívico. Esse último conceito se refere às interações entre a sociedade civil e o governo, que “em regime democráticos tendem a contribuir para tomadas de decisão mais responsáveis e transparentes”. Os casos também se distinguem por país e pelo mandato em que o presidente tomou a iniciativa.

Aqui encontramos o arrazoado de maldades dos anos Bolsonaro: tentativas de alterar o currículo das escolas, perseguições a professores e funcionários públicos e esvaziamento de políticas para mulheres, pessoas lgbtqia+, antirracistas, indígenas etc.; além da rédea solta para forças de repressão e o incentivo à violência privada. Fica patente o paralelo com as trajetórias de Orbán, Duda, Erdogan e outros.

As duas últimas partes avançam para o período pós-eleitoral e os primeiros meses do atual governo. Os processos pelos quais Bolsonaro pode se tornar inelegível são elencados e discutem-se as invasões do 8 de janeiro, “o maior ataque à democracia que o país experimentou na sua história”, o que soa hiperbólico para quem acaba de ler um livro sobre quatro anos de ataques à democracia, neste país que já sofreu golpes bem-sucedidos.

Instante decisivo

Quando o relatório foi completado, o processo eleitoral apenas começava a esquentar. Com a perspectiva de um segundo mandato para Bolsonaro, havia uma questão delicada: o que mais quatro anos lhe permitiriam fazer? De fato, no caminho da autocracia, a reeleição é o instante decisivo, conforme dizem os pesquisadores, que veem nela o “marco fundamental no aprofundamento de processos de autocratização”. À medida que vão ganhando eleições, aspirantes a ditador são encorajados a acelerar os ajustes institucionais que sufocam por dentro a democracia. Nesse aspecto, Hungria e Turquia são os países mais submersos no atoleiro autoritário. Mas, como o livro é escrito da perspectiva de um país que conseguiu não reeleger seu pequeno autocrata, as páginas finais são reservadas ao problema de evitar que ele retorne e reative o processo de erosão democrática. O argumento central reza que o caminho para resguardar as instituições é responsabilizar, inclusive penalmente, os agentes da marcha para a autocracia. 

Neste momento, o leitor pode se perguntar: essa é uma condição necessária, mas seria uma condição suficiente? Trump perdeu em 2020 e Bolsonaro em 2022, é verdade. Mas ambos contam com um considerável apoio popular e pleno controle da narrativa. Foram derrotados graças a mobilizações sociais e por margens ínfimas. Na direita americana, o Partido Republicano foi canibalizado pelo trumpismo ou sua versão mais jovem, a de Ron deSantis. A brasileira se tornou um deserto de alternativas, materializado na rarefação da “terceira via”. Na esquerda, lá e cá, novidades viáveis são promessas distantes, e o que emerge da sociedade civil atrofia tão logo se integra à política institucional.

Ao fim da leitura, um exercício válido é retornar ao início, onde se explica que o avanço de Orbáns, Modis e Dudas tem por base uma regressão generalizada da democracia. Em 2018, mais de 2,5 bilhões de pessoas viviam sob regimes classificados como autocráticos pelo V-Dem. Conhecendo as medidas que esses personagens tomaram para enfraquecer o vínculo entre a sociedade civil e o poder, pode-se tentar identificá-las em casos que não se encaixam no conceito da autocracia, mas também implicam uma corrosão democrática.

O sufocamento de universidades, a limitação de políticas de diversidade, a expansão do aparato repressivo e outras medidas típicas do retrocesso pipocam mesmo nos países que já foram símbolo de liberdade, como a França e a Suécia. A onda de protestos em Israel chama a atenção para a ameaça que Bibi Netanyahu tem representado àquela democracia. Como se vê, o caminho da autocracia é uma estrada larga e será preciso muito cuidado para que o alívio das últimas eleições não seja de fôlego curto.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Diego Viana

É jornalista e doutorando em filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.