Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Em nome da fé

Livro-reportagem preenche lacuna para entender o fenômeno evangélico ao retratar a diversidade, as nuances e os conflitos de fiéis no país

01jul2024 | Edição #83
Ilustração de Veridiana Scarpelli

No início dos anos 2000, o documentário Santa Cruz, dirigido por João Moreira Salles, acompanhou o cotidiano de uma igreja pentecostal em formação na zona oeste do Rio de Janeiro. Com sensibilidade, o cineasta mostrou os impactos da conversão à nova religiosidade no dia a dia das pessoas, que incluía a renúncia a práticas mundanas, como o consumo de álcool, e a formação de redes comunitárias de ajuda mútua. Era evidente, já naquele momento, a necessidade de narrativas que fugissem de representações pejorativas sobre evangélicos no Brasil. Refiro-me, por exemplo, à minissérie Decadência, produzida em 1995 pela Globo, que reproduziu um imaginário estereotipado sobre pastores charlatões e estelionatários.

Naquela época, havia um claro contexto de disputa não apenas entre duas emissoras de televisão, mas também entre católicos e evangélicos, que havia adquirido contornos dramáticos devido ao episódio que ficou conhecido como “Chute na Santa” — quando um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (iurd) desferiu chutes contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, ao vivo pela Rede Record, no dia do feriado nacional em que se celebra a padroeira do Brasil.

Quase três décadas depois, os impactos das transformações no campo religioso brasileiro acentuaram-se ainda mais. Evangélicos passaram a ter uma presença pública mais robusta, ocupando ruas, diferentes mídias e espaços de poder, além de somar um número considerável de fiéis. Estima-se que hoje sejam 30% da população brasileira, reunindo classes sociais diversas, de artistas ricos e famosos a mulheres negras e pobres — maioria do segmento religioso.

No entanto, uma quantidade considerável de brasileiros, incluindo as elites políticas e intelectuais do país, permanece resistente em reconhecer a complexidade desse fenômeno e insiste em reproduzir a narrativa da minissérie Decadência, sem se dar conta de que aquele Brasil católico mudou. É esse o cenário que Anna Virginia Balloussier se propõe a desvendar em O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos, livro sobre este segmento religioso que aborda temas tão complexos quanto controversos, nenhum deles exatamente novo, a começar pela presença dos evangélicos no país.

O Estado verifica a religião dos brasileiros desde 1872. A categoria protestante aparece no Censo já em 1890. Hoje, o ibge reúne sob a categoria “evangélicos” membros de igrejas protestantes históricas — que chegaram junto com imigrantes europeus ainda no século 19 —, igrejas protestantes renovadas, igrejas pentecostais — trazidas por missionários suecos e americanos no início do século 20 —, além de evangélicos não determinados. A expressão evangélicos, portanto, é usada no Brasil para designar uma tradição cristã cujas origens remontam à Reforma Protestante. Trata-se, também, de uma categoria guarda-chuva que aglutina uma imensa variedade de cristãos não católicos, cujas práticas para difusão da mensagem de Cristo podem ser muito diferentes entre si.

‘O púlpito’ é resultado de quinze anos de reportagens e de um consistente diálogo com a produção acadêmica

O púlpito ocupa uma lacuna importante ao mostrar a diversidade, as nuances e os conflitos do segmento evangélico em detalhes. É resultado não só de um acúmulo de quinze anos de entrevistas e reportagens feitas de forma séria e comprometida, mas também de um diálogo consistente com a produção acadêmica sobre religião no Brasil. É esse amálgama produzido a partir da trajetória de Balloussier que nos permite ter acesso a uma série de histórias envolventes, seja dos casos
de conversão de ex-bandidos ou de vendedoras evangélicas de produtos eróticos, passando por influenciadores, empresários e políticos crentes.

O livro-reportagem se destaca pelas reflexões que traz nas entrelinhas de tantas histórias curiosas. Homens brancos, em sua maioria grandes lideranças de igrejas e empreendimentos religiosos, aparecem como personagens centrais na maior parte dos casos narrados. Um olhar mais atento, no entanto, percebe que são as mulheres, as evangélicas comuns, que trazem contrastes e dão ao título a dimensão da complexidade desse fenômeno social. São delas as histórias atravessadas por contradições e dúvidas, menos marcadas por narrativas lineares de superação e conquista que justificam a fé evangélica nas versões masculinas.

Outra grande virtude da narrativa é falar de evangélicos de forma generalizada, mas sem homogeneizá-los. A autora mostra suas diferenças a partir do cotidiano tanto de membros de igrejas autônomas de favelas quanto das megaigrejas hierarquicamente estruturadas. Ou quando fala sobre diversas formas de se viver a religiosidade: das grandes feiras cristãs às conversas sobre sexo, sexualidade e (anti)feminismo com as irmãs de oração, passando pela importância do dízimo para os fiéis.

No que diz respeito à política institucional, O púlpito mostra a consolidação das chamadas “pautas morais” ainda nos anos 90, no período da redemocratização, e o papel do ressentimento de pastores homens no jogo político do país. Também explora a articulação entre evangélicos e católicos em temas-chave, além de citar a influência das teologias e das conexões transnacionais, sobretudo norte–americanas, nas discussões sobre aborto e gênero, por exemplo.

Intolerância religiosa

As histórias de racismo e intolerância religiosa, que aparecem no livro de forma esparsa, deveriam ter ocupado um capítulo próprio. Apesar de inegavelmente heterogêneas, é importante reconhecer que a maioria das igrejas evangélicas explora retóricas de guerra, dá centralidade à figura do demônio e à ideia de um inimigo que precisa ser destruído. Esses inimigos costumam ser materializados em práticas consideradas moralmente condenáveis, como a homossexualidade, mas também nas tradições brasileiras de matriz africana.

A primeira história de racismo religioso aparece logo na primeira página, quando a autora relata sua frustração por ser proibida de receber saquinhos de doces da festa de Cosme e Damião na escola Metodista em que estudou na infância, uma prática que se tornou ainda mais comum nos últimos anos. Expressões como “tá amarrado”e “tá repreendido em nome de Jesus”, largamente incorporadas ao repertório popular, são hoje usadas para refutar manifestações de outras religiões brasileiras, como no caso recente da cantora Anitta, que perdeu 200 mil seguidores ao compartilhar imagens da sua religião, o candomblé.

Se por um lado o crescimento evangélico precisa ser melhor compreendido pela magnitude, multidimensionalidade e importância do fenômeno, igual ênfase precisa ser dada aos impactos disso em termos de racismo religioso, de demonização das diferenças e dos diferentes, que, como inimigos, devem ser combatidos. Esse não é um aspecto incidental dessa religiosidade, mas tão central como todos os outros abordados, e que tem impactos diretos para a garantia de direitos de minorias e da pluralidade em nosso país.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Livia Reis Santos

É doutora em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ) e uma das organizadoras do Dicionário para entender o campo religioso (LSER).

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024.