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A faxina de Dilma

Cientista político explica o impeachment em modelo de coalizão que dá muito poder a presidentes

26jul2023 | Edição #72

Quase uma década se passou desde o impeachment de Dilma Rousseff. São vários os esforços de interpretar o que exatamente aconteceu, quais interesses estiveram envolvidos, quais causas levaram à derrubada. O novo livro de Fernando Limongi vem nessa toada, apontando causas que cientistas políticos chamam de endógenas — de dentro do sistema político — como principais motivos para a queda.

Por meio da reconstituição detalhada dos acontecimentos reportados pela imprensa, Limongi narra o que aconteceu em Brasília e em Curitiba desde o primeiro mandato de Dilma. Para o cientista político, não é possível entender os conflitos no interior da coalizão da então presidenta sem voltar ao fatídico primeiro governo. Isso porque Dilma foi uma defensora obstinada do combate à corrupção e assim foi rompendo com parte de sua base e figuras do próprio partido. Ao longo de cinco capítulos, Limongi costura essas rupturas.

Ao fazer sua faxina ética, demitindo ministros e cargos de segundo escalão envolvidos em casos de corrupção, a ex-presidenta foi perdendo apoio das lideranças no parlamento. Mas a faxina nos ministérios foi modesta perto do que fez na Petrobras, onde foi radical, nas palavras do autor. Lá, Dilma trocou os cargos de presidente e diretores e ainda acabou com a diretoria internacional que era do pmdb. Isso quase lhe custou a reeleição.


Operação impeachment, de Fernando Limongi, aponta causas que cientistas políticos chamam de endógenas como principais motivos para a queda de Dilma

A narrativa segue repleta de ações e reações que o público acompanha como num thriller. No caso, a reação dos partidos veio com Pasadena. Ao tentar reputar a Dilma a responsabilidade pela compra injustificada da refinaria, as lideranças ameaçadas com a faxina — especialmente Eduardo Cunha, chamado pelo autor de chantagista-mor da República — buscavam, na verdade, acabar com sua candidatura em 2014. Desta forma, a primeira tentativa de impedir Dilma ocorreu ainda em seu primeiro mandato: foi Pasadena e deu errado.

A presidenta não recuou. Ao ser reeleita, montou seu novo governo no mesmo molde do anterior, dando continuidade à limpeza e com a ausência de quadros de destaque do PT. Quando explodiu a Operação Lava Jato, reafirmou seu compromisso com o combate à corrupção e defendeu a operação. Na análise de Limongi, isso reforçou a mensagem de que Dilma não protegeria ninguém, nem os parlamentares de sua base de apoio e nem mesmo seus colegas de partido, o que se confirmou conforme a operação avançava. Receita do desastre.

Armação

Paralelamente, o psdb começava a chocar o ovo da serpente em manifestações que já contavam com a extrema direita pedindo intervenção militar, ainda no final de 2014. Para Limongi, o partido foi o responsável pelo que se sucedeu — e não Junho de 2013, como análises dos dez anos dão a entender. No diagnóstico do autor, as manifestações aparecem como pano de fundo, têm importância apenas na medida em que entram no sistema político. Não podem ser ignoradas, mas tampouco são o coração de sua análise.

Ainda assim, tem muito o que se aproveitar no livro para entender a direita nas ruas. A começar pela própria narrativa da família Bolsonaro. Como Limongi aponta, ela já estava em manifestações na primeira oportunidade depois do segundo turno de 2014 — e armada, diga-se de passagem. O autor revela também a proximidade dos movimentos de direita — Vem pra Rua, MBL, Nas Ruas — com Eduardo Cunha. O ex-deputado fazia uso desses quando lhe era conveniente no passo a passo do impeachment. O objetivo: utilizar todas as ferramentas que tinha para escapar da Lava Jato. Essa necessidade foi se intensificando conforme ficou claro que a operação tinha dois núcleos: um centrado em Brasília, na Procuradoria Geral da República, cujo objetivo era chegar nos líderes peemedebistas; outro centrado em Curitiba, no Ministério Público Federal e na Justiça Federal, que visava líderes petistas, especialmente Lula.

Se Dilma quisesse paz, teria que livrar Cunha da PGR. Porém, isso ela não podia fazer, inclusive, segundo Limongi, porque o principal objetivo do núcleo de Curitiba era desestabilizar o governo. Ou seja: ela estava ilhada.

Ainda assim, até o primeiro semestre de 2016, Dilma conseguiu usar todos os recursos que o presidente tem — que não são poucos, na visão do cientista político — para se manter no poder. Mas não foi o suficiente, principalmente porque ela não tinha como proteger os partidos que integravam sua coalizão, algo que Temer podia fazer. Desta forma, PT e Dilma passaram a ser vistos, na metáfora do autor, como cargas a serem lançadas ao mar para salvar a embarcação.

Colapso

O desfecho trágico já sabemos — o que recebemos é a análise retrospectiva de um dos principais cientistas políticos do Brasil e especialista no nosso presidencialismo de coalizão. Limongi conclui que a ruptura era conveniente para os dois lados. Para o PT, foi um jeito de falar que o processo foi um golpe contra as políticas que havia implantado em seus governos. Para os partidos fisiológicos, especialmente o pmdb, foi uma forma de se proteger das investigações inéditas em alcance.

Até por isso, Limongi não concorda com a tese do golpe. Os partidos da coalizão estiveram com o PT desde o começo, votando a favor de boa parte das políticas petistas, e não abandonaram o governo em 2014. Fora isso, aceitaram tentativas de refazer a coalizão em 2015 e até no começo de 2016. Assim, diferente do que identifica no discurso petista, Limongi conclui que não haveria incompatibilidade ideológica entre as políticas do pt e o fisiologismo do pmdb, invalidando essa explicação para o impeachment.

PT e Dilma passaram a ser vistos como cargas a serem lançadas ao mar para salvar a embarcação

Com essa análise, o autor sublinha como é difícil e traumático produzir uma ruptura no presidencialismo de coalizão e como esses atores políticos não são movidos por ideologias. Notável, na argumentação, não haver menção e análise do programa de governo de Temer — “Uma Ponte para o Futuro” —, que congregava interesses exógenos (políticas fiscais ultraliberais, por exemplo) e endógenos (os cargos dados à coalizão) do sistema político.

Também ficam de fora da análise os votos dos eleitores, decisivos nas definições de agentes políticos, e as contingências próprias da política, que impõem aos atores mudanças de rota. De forma inesperada, o PT embalou sua quarta vitória seguida nas eleições de 2014, a segunda de Rousseff — preocupando ainda mais o fisiologismo. Era difícil combater o partido nas urnas e as insatisfações com os petistas dentro e fora do sistema político foram se acumulando progressivamente, de forma que o apoio a ele em um momento não garantia apoio futuro nem compatibilidade ideológica e com os interesses da sociedade.

Além disso, o fisiologismo tentou promover a ruptura antes, mas a contingência impediu, como no caso de Pasadena. Nem sempre os interesses dos atores políticos são efetivados como eles previam. É preciso que a contingência seja favorável, que a virtù consiga submeter as constrições impostas pela fortuna. Coisa rara, como ensinou Maquiavel séculos antes em um guia supreendentemente atual.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Daniela Costanzo

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.