Literatura,
Viver estando vivo
Com sabedoria despretensiosa, ensaios de Natalia Ginzburg mostram como a alegria está misturada ao escombro
01abr2020 | Edição #32 abr.2020Timidez, paciência, deboche, apuro: seriam palavras capazes de resumir tudo que é comportado em As pequenas virtudes, breve coletânea de ensaios de Natalia Ginzburg. Além da produção ensaística, a italiana escreveu contos, romances, peças de teatro e o inclassificável A família Manzoni (Companhia das Letras, 2017) — reunião de cartas da família e de amigos do escritor Alessandro Manzoni — ao longo da segunda metade do século 20. Como eixos comuns, a minuciosa curiosidade, o valor dado aos detalhes que compõem pessoas, espaços e tempos, a prevalência da casa e dos temas familiares e, sobretudo, um forte senso ético, cuja força reside na consideração das incongruências humanas.
Natalia Ginzburg foi a filha caçula de uma família proeminente da esquerda italiana e cresceu concomitante ao desenvolvimento do regime fascista. As lembranças desses tempos podem ser encontrados na sua obra-prima, Léxico familiar (lançado em 2018 pela Companhia das Letras). Vivendo nos tempos ditatoriais de Mussolini, ela, como judia e casada com um intelectual judeu, foi para o exílio e buscou inúmeros esconderijos. Além disso, teve seu marido, Leone Ginzburg, torturado e morto durante a ocupação alemã do país.
Muitos estilhaços de memórias lampejam nos ensaios de As pequenas virtudes. Seria limitado, contudo, entender os textos como memorialistas, principalmente porque a autora tem uma notável desenvoltura no trânsito entre lembranças, acontecimentos absolutamente prosaicos e desconcertantes reflexões existenciais, com simplicidade crua e uma intrigante despretensão. Esse ponto resguarda os ensaios de anacronismos ao trazer à tona o desafio que é viver estando vivo — e não há nenhuma tautologia nisso. As virtudes de Natalia Ginzburg são introduzidas com um pedido de desculpas: ela não é capaz de corrigir seus textos.
Das ruínas à esperança
A coletânea — publicada na Itália em 1963 e no Brasil em 2015 pela Cosac Naify e reeditada agora pela Companhia das Letras, com a mesma tradução de Maurício Santana Dias — é dividida em duas partes que não seguem uma sequência temporal precisa. Na ausência de cronologia, as seções poderiam ser organizadas com amparo destes versos de Carlos Drummond de Andrade: “Não chora as ruínas da esperança./ Com elas faz uma esperança nova”, já que ambas as seções abrem com textos sobre desilusões.
“Inverno em Abruzzo” narra as lembranças do exílio numa pequena cidade do sul da Itália e encerra com o relato cru do assassinato do marido pelas mãos do regime nazifascista, e “O filho do homem” se detém nas perseguições políticas, nas fugas e na sequela indelével do medo. Na escrita de Ginzburg, no entanto, a urdidura da memória envolve respiros profundos e sentenças que extrapolam eventos específicos. O exílio é contado também, sem nenhum paradoxo, como um insólito idílio familiar, brutalmente perdido com a morte do marido, enquanto à perseguição política é garantida maior amplitude com a imagem do “vulto atroz da casa caída”. A desolação de ser esmagada pelo totalitarismo, então, é contada pela dor de não ter para onde voltar, de não ter lugar no qual repousar a cabeça.
Dois inícios repletos de ruínas. Entretanto, o ritmo dos ensaios seguintes, em cada uma das partes, é de uma lenta e terna reconstrução, sem dispensar um caráter áspero. No posfácio que escreveu para a edição brasileira de Caro Michele (Cosac Naify, 2009), a escritora Vilma Arêas comenta que a alegria está misturada ao escombro na escrita de Ginzburg. A imagem vem a calhar para ler os processos de reconstituição em As pequenas virtudes.
A desolação diante do totalitarismo é contada pela dor de não ter para onde voltar
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Imagens, a propósito, são traços particulares da autora, que, com uma atenção dedicada às minúcias aparentemente insignificantes, expressa um momento da vida de indeterminações e incertezas com a figura de um sapato furado. Ou ainda, o ofício da escrita ganha a forma de uma pessoa que anda pelo seu país natal, “nas ruas que conhece desde a infância, entre as árvores e os muros que são seus”: a escrita é capaz de proteger do exílio até mesmo quem anteriormente fora condenado ao desterro. O sentido dado a esse ofício parece ser o cerne transformador de ruína em esperança nova. O ensaio final, aliás, é encerrado com a frase: “Amor à vida gera amor à vida”.
O que é, então, esse amor à vida? Em trecho do ensaio que intitula o livro e diferencia as pequenas virtudes das grandes, Ginzburg afirma que as pequenas viriam de um instinto de defesa, em que a razão disserta “como um brilhante advogado de integridade pessoal”. “O melhor de nós” estaria nas grandes virtudes, as que jorram de um “instinto mudo”, e não é nada vistoso ou deslumbrante, nem é da ordem da prudência ou do sucesso. O amor à vida está encadeado à tomada de posição, à franqueza, à coragem.
Assumir posição, ser franco e corajoso envolve também uma profunda, e por vezes cômica, curiosidade em relação às incongruências que nos constituem. Embora haja firmeza ética quanto à recusa ao cinismo, ao medo de viver e à redução das coisas ao valor em dinheiro, encontramos nos ensaios o registro das tolas fantasias que animam a adolescência, bem como a admissão de certa satisfação em se ver capaz de inspirar sofrimento no outro, como expressão do eventual valor que podemos ter para esse alguém.
Em “Retrato de um amigo”, uma homenagem ao poeta Cesare Pavese, Ginzburg narra o sofrimento de quem “não quer dobrar-se e amar o curso cotidiano da existência, que prossegue uniforme e aparentemente sem segredos”. A ausência de mistério é apenas aparência. E os ensaios nos convidam a nos afastarmos das branduras domesticadoras dos hábitos e abrir bem os olhos para estarmos despertos. Despertos na insatisfação rotineira, na dor mais cortante e perene, no sorriso mais ridículo, na felicidade mais clandestina, ou seja, em tudo que foge da alçada do eficaz e coeso advogado da razão.
Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.
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