

Encontro de Leituras,
Visões da montanha mágica
O filósofo português João Pedro Cachopo propõe uma leitura da obra-prima de Thomas Mann que relaciona o romance de 1924 a questões próprias do nosso tempo
01fev2025 | Edição #90 fevNo ensaio Por que ler os clássicos, uma das definições de Italo Calvino para um clássico é ser um “livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. É uma premissa dessa ordem que está em questão em O escândalo da distância: uma leitura d’A montanha mágica para o século XXI, do filósofo, musicólogo e professor na Universidade Nova de Lisboa, João Pedro Cachopo.

Cachopo traça algumas reflexões sobre a questão da distância em A montanha mágica, de Thomas Mann, romance que completou cem anos em 2024. Nele, o distanciamento é figurado no isolamento do protagonista em um sanatório. A distância se refere à delimitação de um ângulo para observar o mundo, colocando em tensão, também diante das circunstâncias atuais, as posições de um enfileiramento junto às certezas estabelecidas e de um isolamento contemplativo que nunca se transforma em ato. Frente a uma oposição como essa, o ensaio de Cachopo destaca a sutil e complicada calibragem de posicionamento que está presente no romance de Mann e que é também algo premente para a vida atual.

Para chegar ao modo como o autor desdobra aspectos tratados por Mann ao articulá-los a questões próprias do nosso tempo, vale a pena, antes, evocar, em linhas gerais, o enredo de A montanha mágica. Recorro ao modo como o próprio Cachopo apresentou o romance em um texto publicado nesta revista:
O romance, considerado por muitos leitores e críticos a obra-prima do escritor alemão, conta a história peculiar de Hans Castorp, um jovem engenheiro hamburguês, de ambições e talentos medianos, que decide visitar o primo tuberculoso num sanatório dos Alpes suíços em 1907. Com 23 anos, Castorp planeia uma estadia de apenas três semanas, mas, sucumbindo a uma febre súbita, acaba por ficar, como que enfeitiçado, por sete anos. Quando, finalmente, desce à planície, não o faz por iniciativa própria, mas por ser convocado para a guerra, onde desaparece no caos do campo de batalha.
Além do destaque a esse atributo “mediano” do protagonista, Cachopo também dá ênfase a dois personagens que convivem com Castorp no sanatório: Settembrini e Naphta. O primeiro “defende a razão, o progresso, o humanismo e a liberdade”, o segundo é um jesuíta afeito a radicalismos. Se o protagonista encarna a “mediocridade”, os debates entre Settembrini e Naphta representam as tensões que se esboçavam em uma Europa em crise e que culminariam na Primeira Guerra Mundial e se acirrariam ainda mais com os governos totalitários dos anos seguintes e na Segunda Guerra Mundial.
Visões da guerra
Na primeira parte do ensaio, interessa ao autor, depois de apresentar o enredo do romance, colocar em questão o tempo de redação de A montanha mágica, entre 1912 e 1924, à luz do modo como Mann se posicionou e encarou as transformações da Europa no período. Nesse sentido, valeria destacar que o romance surge inicialmente como uma breve novela em um momento em que o escritor passava por uma crise criativa e rejeitava seu livro anterior, Os Buddenbrook, de 1901, a saga de uma família em decadência.
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Cachopo aborda os doze anos em que Mann trabalhou no texto do romance contando como referência o posicionamento político do escritor que, em um primeiro momento, encarou a guerra com certo entusiasmo. De um ponto de vista subjetivo, o conflito teria tido “o mérito de arrancar o escritor ao torpor em que este sentia a sua vida mergulhada”; e de um ponto de vista social, a guerra, para Mann, nesse primeiro momento, significava a possibilidade de a cultura triunfar sobre a civilização, isto é, o “carácter de um povo no que este tem de mais singular, manifestando-se em formas de vida, ideias e costumes” prevalecer sobre a universalidade “da racionalidade, do cepticismo filosófico, da moderação ética”.
Anos depois, a “tremenda curiosidade” que Mann sentiu pela guerra transformou-se em um ativo posicionamento contra o nazismo e a favor de ideias republicanas. Cachopo interpreta A montanha mágica à luz dessas mutações.
[O romance] exibe as cicatrizes de hesitações de um espírito inquieto perante as transformações do seu tempo. Estas transformações foram de natureza histórica e política, mas envolveram também profundas mutações tecnológicas, com implicações militares, médicas, psicológicas, culturais e artísticas. E aqui reside uma vertente menos conhecida do romance, que importa descobrir e iluminar.
E é essa vertente que o filósofo aborda em seu ensaio, a começar pela relativização da definição da obra de Mann como um romance de formação, ou seja, uma narrativa que, grosso modo, retrataria a jornada de esclarecimento e aprimoramento moral de um herói. O peso dado à noção de distância deriva propriamente daí: A montanha mágica não comunicaria que o período de Castorp no sanatório implicaria necessariamente um “isolamento reflexivo”; aliás, “desde o início, é evidente que o modo de vida do sanatório fomenta a apatia”.
Curiosidade e desconfiança
Em sua análise, Cachopo explora o tempo em acepções diversas: o tempo como é representado no romance, o tempo que Thomas Mann levou para escrevê-lo, o tempo como circunstância histórica, até chegar à leitura de que aspectos tratados no livro que completa cem anos são próprios também do nosso tempo. A começar pelo desenvolvimento da técnica e da tecnologia:
A actualidade d’A montanha mágica diria respeito a inquietações, decorrentes do espanto provocado pela emergência de certas tecnologias, cujos desdobramentos se prolongam até hoje.
Mas o autor vai além: a questão em si não seria apenas que a sensibilidade de Mann detectou o modo como as transformações técnicas influíam na forma como um “medíocre” daquele tempo vivia. O ponto essencial seria que existe, no romance, algo de intempestivo na relação que as pessoas estabelecem com o avanço da tecnologia que pode se conectar com questões atuais: os riscos de não ponderar a curiosidade com a desconfiança, equilíbrio este que o próprio Mann teve em vida e contribuiu para as transformações de sua postura política ao longo da primeira metade do século 20.
O tempo de redação do romance é visto à luz do posicionamento político de seu autor
A curiosidade e a desconfiança têm a ver precisamente com a delimitação da justa distância. Se por um lado a “tremenda curiosidade” que Mann declara pouco depois da eclosão da Primeira Guerra pode levar a uma aderência imediata às circunstâncias colocadas por determinado período histórico, a desconfiança sem a curiosidade não deixa de pender para o polo da apatia e da covardia, à medida que encastela o observador em um ponto pretensamente puro, de alheamento do que considera ser a vulgaridade compartilhada pela massa.
A oposição entre a montanha, onde Castorp se isola por sete anos e de onde é arrancado por motivos alheios à enunciação de seu desejo, e a planície, onde a vida corre dia após dia submetida às disputas e pressões morais da mentalidade vigente, é desdobrada por Cachopo, portanto, em um questionamento contemporâneo relacionado ao modo de assimilar a realidade e às formas de se posicionar diante dela. Os dois polos extremos seriam, então, o gregarismo inadvertido e insensato e um sectarismo arrogante e covarde:
A boa distância é uma seta apontada ao coração desses dois inimigos: o militante, que sempre já sabe de que lado está, e o esteta, para quem nunca há motivo para se comprometer com um mundo cruel e vulgar. Ambos, o primeiro em cada encruzilhada da planície, o segundo em cada cume da montanha, desconhecem a boa distância. De facto, do ângulo desta, aquela encruzilhada é um beco e aquele cume é um abismo.
Olhar de perto demais ou aderir prontamente a uma ideia que circula no ar significa a supressão de um afastamento que a dúvida e a paciência requerem; por outro lado, o afastamento excessivo pode fazer do outro algo como uma abstração e gerar, na prática, omissão diante das exigências éticas que um período histórico coloca. E assim as duas posições antagônicas se encontram em um sentido análogo: a desfiguração da realidade que está dada.
A obra centenária de Mann transmite um desafio existencial que mantém a sua atualidade
É uma medida delicada, a da “boa distância”, que não é de forma alguma definitiva e fixa. Nos termos de Cachopo, a “boa distância” é colocada como uma questão particularmente pertinente em nossos “tempos encurralados e crepusculares” e é considerada em uma definição ao mesmo tempo inequívoca e avessa a prescrições: “pode ser solidão, pode ser exílio, pode ser desespero, mas não será indiferença”. A um século de distância, portanto, um romance como A montanha mágica transmite um “desafio existencial” que mantém a sua atualidade: “resistir à tentação da desistência”.
Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros
Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Visões da montanha mágica”
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