Jornalismo,

A canção do carrasco

Livro-reportagem peruano sobre extermínio de militantes do Sendero Luminoso nos anos 90 causa reflexões sobre o Brasil de 2021

01out2021 | Edição #50

A barbárie do Estado, quando é contada por quem a cometeu, pretende se cobrir de uma normalidade, de uma legalidade. Quer exibir uma racionalidade e sobretudo uma justificativa. O assassino do Estado se diz diferente do criminoso comum: agiu com um éthos supostamente nobre, em um determinado contexto político, econômico e social que ele evocará até o final dos tempos na esperança de conseguir a absolvição do horror que cometeu.

Rudolf Hoess, responsável durante dois anos pelo campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde centenas de milhares de judeus foram exterminados, exaltou o seu “tremendo amor ao país” e à família. Em um texto escrito durante o seu julgamento em Cracóvia, ao cabo do qual seria executado por enforcamento no campo em 1947, disse que seu papel era apenas o pedaço de um plano maior. “É verdade — eu soube que os prisioneiros de Auschwitz eram maltratados pela SS, pelos empregados civis e nada pouco pelos próprios colegas prisioneiros. Eu usei todos os meios ao meu alcance, mas fui incapaz de parar com isso. Uma pessoa não é páreo para esse tipo de maldade, depravação e crueldade. […] Eu me tornei uma engrenagem na roda da grande máquina de extermínio do Terceiro Reich. A máquina foi destruída, o motor sucumbiu, e eu preciso sucumbir junto com ele. O mundo exige isso.”

Jürg Amann, o editor que reuniu os escritos de Hoess em um curto livro de 2011 chamado The Commandant (O comandante), lançado pela editora Overlook Duckworth, escreveu na introdução: “Nesse testemunho pessoal, nessa terrivelmente simplória autoacusação, eu encontrei uma verdade mais profunda e íntima do que qualquer ficção poderia apresentar”.

É esse tipo de desconcertante acesso a uma visão particular criminosa — absolutamente tenebrosa porque sabemos que é real — que o leitor encontrará em Muerte en el Pentagonito: los cementerios secretos del Ejército peruano, lançado originalmente em 2004 e relançado há dois anos pela Editorial Planeta Perú. Pentagonito é o apelido dado ao prédio do comando das Forças Armadas do Peru, equivalente ao Ministério da Defesa brasileiro.

Trata-se de um livro-reportagem essencial sobre o Peru e a América Latina, mas sem tradução para o português e por isso ainda pouco conhecido no Brasil. Seu autor, o jornalista Ricardo Uceda, é um importante incentivador do jornalismo investigativo na América Latina por meio do instituto que fundou e dirige, o IPYS (Instituto Prensa y Sociedad), sediado em Lima, que anualmente promove eventos, treinamentos de jovens jornalistas e premiações.

Viagem ao inferno

O personagem central do livro se chama Jesús Sosa Saavedra, que é apresentado no início dos anos 80 como um jovem militar peruano de baixa patente, um agente de inteligência comum, que com o passar dos anos passa a exercer, até pela frieza que o destaca perante seus superiores, um papel tremendamente violento na guerra suja contra os militantes do Sendero Luminoso. A organização guerrilheira de inspiração maoísta desencadeou uma “guerra revolucionária” no Peru com milhares de mortos de lado a lado do conflito nos anos 80 e 90. Pelos olhos de Sosa, um dos tantos incumbidos pelo Exército peruano de exterminar a guerrilha, o leitor faz uma viagem ao inferno, acompanhando uma orgia de execuções, desaparecimentos forçados e enterros (e desenterros) clandestinos que vão de 1980 a 1993.

Sosa apresenta o ponto de vista dos vencedores do conflito. E ele é aterrador. O prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa escreveu sobre o livro: “Esse personagem, o suboficial de inteligência Sosa, principal informante de Uceda, uma verdadeira máquina de matar, parece extraído do cinema noir ou da literatura sádica. […] O livro não é fácil de ler porque muitas de suas revelações estremecem e produzem náuseas”.

A figura de Sosa remete à de Maximilien Aue, o fictício oficial da SS nazista de As benevolentes (Companhia das Letras), pelo qual o escritor Jonathan Littell repassa toda a loucura da Segunda Guerra Mundial, do início, em 1939, à derrocada alemã, em 1945. A diferença crucial é que Sosa é absurdamente real — aliás, está vivo até hoje, cumprindo pena no Peru.

O ex-agente conta a Uceda como inúmeros prisioneiros senderistas foram torturados e executados quando já estavam presos em diferentes quartéis no interior do país. Descreve sequestros, fuzilamentos sumários e ocultação de cadáveres e provas. A certa altura menciona mais de 250 guerrilheiros eliminados em uma  única região. Relata que em uma base militar de Ayacucho “cortou a cabeça e os dedos de seis cadáveres” a fim de comprovar se um deles era um senderista muito procurado na época. Conta como, nos quartéis, “davam prestígio as coleções privadas de orelhas, colares de lóbulos mortos amarrados por uma corda”.

Sosa conta como inúmeros prisioneiros foram torturados e executados quando já estavam presos

Há cenas de grotesco nonsense. Em uma determinada noite, um oficial estranho ao quartel foi jantar e encontrou um volume escondido embaixo da toalha de mesa. Ao levantar a toalha, descobriu que era a cabeça de um “terrorista”. Em outra ocasião, na base de Cangallo, o comandante de um grupo de militares bêbados, após uma partida de futebol, provocou um subtenente novato perguntando se ele era capaz de arrancar a cabeça de um senderista. Os oficiais riram e continuaram bebendo. Pouco depois, o novato surgiu segurando a cabeça de um prisioneiro que acabara de fuzilar. “Aqui está a cabeça de um terrorista, meu comandante! Missão cumprida, meu comandante!”

O premiado livro ficcional de Jonathan Littell foi alvo de debates, quando do seu lançamento, por supostamente apresentar uma face demasiadamente humana do personagem. Alguns indagaram se a obra era “terrivelmente honesta ou simplesmente perversa”. A mesma reflexão poderia ser levantada sobre o livro de Uceda. Por telefone, eu perguntei ao escritor como foi abrir a porta para a versão de um assassino frio, de um torturador. Como tratar dessa verdade que emerge, se ela é repugnante?

“Eu me dei conta de que havia uma verdade que era inaceitável do ponto de vista de uma sociedade democrática. Mas era uma visão dos fatos. Eu compreendi que essa visão teria que ser transmitida. É uma visão parcial, mas que nunca havia sido escutada. Fiz um enorme sacrifício para ter, em dois capítulos, os senderistas como os protagonistas. A resposta é que eu teria que mostrar esse universo [dos militares]. O que eles pensam. Meu papel era esse. E eu digo no começo que é uma perspectiva que nunca havia sido escutada.”

Pergunto como um escritor ou um jornalista devem encarar o desafio amargo de ouvir alguém que confessa tantos atos criminosos, sem perder de vista o papel de recuperar uma história de relevância social e política. “Quando me perguntam sobre o livro, sempre lembro o que disse Santuc, um filósofo jesuíta e reitor de uma universidade. Falando sobre o meu livro, ele disse que iria contar algo pessoal: ‘Eu estive na Guerra da Argélia. Estava representando o ‘bem’. Os do ‘mal’ eram os que nós matávamos. Eu não conseguia dormir à noite porque escutava as pessoas sendo torturadas. O mal está em nós, e o bem está em nós. Esse livro mostra que a gente que pode fazer o mal também sente dúvida, e que o bem e o mal resultam do nosso livre-arbítrio’. E ele concluía dizendo que nunca deve haver guerras, porque as guerras envilecem as pessoas. Isso para mim é muito importante.”

Uceda refere-se a uma palestra que o francês Vicente Santuc (1936-2011), então reitor da Universidade Antonio Ruiz de Montoya, de Lima, fez sobre o seu livro em 2005. Ele contou ter participado da Guerra da Argélia (1954-62) como um militar de vinte e poucos anos de idade. “Fiquei várias noites sem dormir porque se torturava do outro lado da parede. Mas tenho que reconhecer que em mim havia certa cumplicidade com o torturador em razão da ideia, quiçá graças à tortura, de que iríamos obter uma informação que me permitiria escapar com vida da próxima emboscada da manhã, e não morto como meu companheiro na véspera. Não é fácil emitir um juízo. Quem não tem culpa que atire a primeira pedra. Evidentemente que é necessário dizer não à tortura e à violação dos direitos humanos”, escreveu Santuc.

“Guerra antissubversiva”

As alusões de Uceda e Santuc precisam ser compreendidas no contexto dos anos 80 e 90, quando os peruanos sofreram os impactos de um governo arbitrário, que havia dado um autogolpe de Estado em 1992, perpetrado por Alberto Fujimori, e do terrorismo doméstico desencadeado pelo Sendero. A Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru estimou, no início dos anos 2000, que a chamada “guerra antissubversiva” deixou um total de 69 mil mortos, dos quais 45 mil permaneciam sem reconhecimento. O Sendero teria matado 31 mil pessoas.

Os enfrentamentos deixaram cicatrizes em todo o país. O clima de insegurança na população levava o governo a reagir de forma ilegal e truculenta, estimulando uma espiral de violência. Meses após o golpe fujimorista de abril de 1992, por exemplo, o Sendero detonou dois carros-bomba na rua Tarata, no coração do bairro de classe média alta de Miraflores — 43 pessoas morreram. Dois dias depois membros do serviço de inteligência do Exército peruano invadiram a Universidade Nacional de Educação Enrique Guzmán y Valle, conhecida como La Cantuta, sequestraram, mataram e desapareceram com nove estudantes e um professor que nada tinham a ver com o atentado em Tarata.

Foi justamente durante a investigação jornalística sobre o massacre de La Cantuta que Uceda ouviu pela primeira vez o nome de Sosa. Um ponto fundamental de seu livro é que a narrativa parte do relato do militar, mas não se esgota nele. Um dos grandes jornalistas investigativos da América Latina, Uceda usa boa parte do livro para descrever o esforço que ele e sua equipe do semanário , do qual era diretor, desenvolveram a partir de 1992 para comprovar o Massacre de La Cantuta.

O primeiro encontro com o militar para o livro, contudo, só ocorreu em 1997, quando Uceda já estava trabalhando em outro veículo. “Sosa estava em uma rua do centro de Lima, eu estava no carro. Eu o peguei e fomos a um café. Ele é um militar, um suboficial, me deu a impressão de um tipo muito franco. Não me pareceu uma pessoa que estava buscando negociar algo. E era um homem intenso, essas pessoas que muito dificilmente dão duas versões sobre um fato. Me parecia um tipo autêntico”, contou o autor.

Seguiram-se vários encontros na própria casa de Uceda, já que Sosa naquela época ainda não era procurado pela Justiça nem conhecido pelo grande público. Nas primeiras entrevistas, Sosa contou como foi o processo de formação, apogeu e crise do Grupo Colina. Tratava-se de uma unidade paramilitar usada para ações brutais, um esquadrão da morte, formada por militares de inteligência, perpetradores da chacina de La Cantuta e de diversas execuções de supostos membros do Sendero. Como o massacre de quinze pessoas, incluindo uma criança de oito anos, em Bairros Altos, em Lima, em novembro de 1991, um outro episódio que sacudiu a sociedade peruana nos anos 90.

“Dessas conversas resultou a compreensão de que vários dos integrantes do Grupo Colina eram agentes de inteligência que haviam entrado no Exército aproximadamente no começo dos anos 80. Pelo menos cinco agentes do Grupo Colina haviam feito operações secretas, algumas criminais, durante vários governos. Sosa me disse que havia estado em Ayacucho, onde participou de desaparecimentos de presos. O Sendero começou a guerra da subversão em Ayacucho no ano de 1980. Sosa começou em 1980. Eu pensei: ‘Aqui está a história dessa gente desde o começo até La Cantuta’. Porque eles tinham toda uma história, um discurso para servir ao país desse modo”, contou-me Uceda. O jornalista disse que tratou de procurar e localizar as pessoas às quais “o Estado encarregou de fazer o trabalho sujo”, “o tipo que está na escória de uma ditadura, porque não é a ditadura somente, é a parte que fez o trabalho sujo da ditadura”.

Bolsonaro heroifica a violência do Estado. No Peru, ela foi exercida por militares como Sosa

“Mas eles também têm sua dignidade, são seres humanos, têm dúvidas, e eles no fundo estão pensando: ‘Bem, o resto da sociedade não tem valor ou não tem a possibilidade de fazer o que eles fazem’. Que é matar a maior quantidade possível de terroristas. Porque o sistema judicial não vai fazer. Mas eles na verdade não têm o poder da decisão [primeira], eles são o braço armado do Estado. O Estado é que disse ‘mata’, e eles matam. O Estado pode dizer. ‘Há um superior’, eles dizem. No fundo é uma discussão moral. Nunca o poder político quis tomar uma decisão sobre as ações que o Estado quis cometer para derrotar a subversão.”

Ao longo da investigação para o livro, que durou cerca de sete anos, Uceda disse ter compreendido a “claustrofobia moral dessa gente”. “Eles se sentiam heróis, não se sentiam lixo. No Peru, os presidentes disseram [para exterminar a guerrilha]. É como se, no Brasil, o presidente mandasse alguém suprimir uma rebelião em um estado indômito. O militar resolve, ‘tem que matar inocentes’. Mas quando vêm as denúncias do jornalismo, das vítimas, o poder político acoberta o presidente, lhe dá imunidade.”

Uceda descobriu que não havia “um conjunto de vampiros, uma gente de merda, não, era gente até imbuída de um sentimento patriótico”. “Como se alimenta esse sentimento de ‘fazer o bem’? E quando a sociedade descobre os crimes, os direitistas, inclusive, horrorizados [dizem]: ‘O que essa escória fez?’. E os próprios generais. O que mais doía em Sosa é que os generais, o Exército, antes o haviam adulado, consideravam-no uma pessoa espetacular. E ele não queria outra coisa, como um cão ao lado do seu dono, que o acariciava. E com isso estava feliz. E sua motivação era isso. Mas ele estava completamente ressentido com o Exército.”

É difícil para um brasileiro que vive sob o impacto do governo civil-militar de Jair Bolsonaro acabar as páginas de Muerte en el Pentagonito sem traçar algum paralelo com a realidade brasileira de 2021. Bolsonaro, militar da reserva, já exaltou as torturas e assassinatos cometidos durante a ditadura militar. Assim como Fujimori, todos os generais da ditadura brasileira pelo menos até 1979 recorreram, em momentos diferentes, à dura repressão contra a oposição e a guerrilha armada. Bolsonaro heroifica a violência do Estado. No Peru, ela foi exercida por militares como Sosa. Mas, no campo da política, o que a longa trajetória de crimes de Sosa enfim significou? “Penso que Sosa narrou ações fracassadas do ponto de vista militar. Porque implica cometer crimes que logo as sociedades se encarregam de repudiar. Eles [agentes] são a expressão de más decisões e más doutrinas tomadas por um comando. Há muitas histórias de vergonhas militares. Como se desculpam um general, uma instituição? Essa é a discussão política. Inclusive para os militares, que deveriam ter muito que discutir sobre isso”, comentou Uceda.

Jair Bolsonaro é um saudosista dos tempos do arbítrio e da opressão. Se fosse brasileiro nos anos 60 e 70, Sosa bem poderia ser alçado hoje a um posto de herói bolsonarista. Tanto Bolsonaro quanto seu vice, Hamilton Mourão, exaltam o falecido torturador Carlos Brilhante Ustra. A diferença é que Sosa veio a público falar sobre o que fez. Ao contrário de Ustra, que morreu negando qualquer participação em crimes na ditadura.

“Para mim, Sosa teve uma atitude rebelde. E não me pediu dinheiro, não me pediu benefícios. Apenas disse que iria contar sua verdade. Eu não dei a ele nenhum benefício. Creio que ele confiou em mim. Entendo que ele fez um esforço, uma aposta de contar tudo isso e mostrar todo o horror, a infâmia. Porque foi um ato brutal de desnudamento.”

Quem escreveu esse texto

Rubens Valente

Jornalista, é autor de Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.