História,

Renovação do estranhamento

Coletânea de textos de viajantes ingleses no Brasil colonial traz relatos de alianças entre corsários e escravizados e de confrontos com indígenas

24out2021 | Edição #51

Passando em 1593 por certa ilha do litoral brasílico, o erudito Richard Hawkins deparou com frutas curiosas como “um tipo de cereja (…) de coloração vermelha, com um caroço, mas diferente das nossas cerejas, não totalmente redonda, mas em gomos”. Talvez se tratasse de uma pitanga ou uma acerola, mas não é possível saber com certeza. Embora o local fosse inabitado, é improvável que Hawkins e seus homens fossem os primeiros europeus a experimentar a fruta, pois relatava ter encontrado nas proximidades um tronco de árvore em que estavam entalhados nomes de “vários portugueses, franceses e outros” que ali estiveram antes. Tais viajantes deixavam vestígios de sua passagem, assim como o Novo Mundo provocava neles vivas impressões, retornando com relatos que expandiam os horizontes do mundo além dos limites costumeiros, desafiados por uma realidade que muitas vezes não se acomodava ao previamente conhecido no outro lado do Atlântico.

Assim como sucedia aos próprios viajantes, os documentos derivados de suas jornadas possuem a singular capacidade de nos convidar a olhar sob novas perspectivas aquilo que nos parece familiar, repensando esse Novo Mundo. É essa oportunidade de renovação do estranhamento que a fascinante seleção de textos do livro Ingleses no Brasil: relatos de viagem (1526-1608) oferece ao leitor. A obra é organizada e traduzida por Sheila Hue, estudiosa de relatos de viagem, e Vivien Kogut Lessa de Sá, especialista em literatura inglesa, ambas responsáveis pela publicação de outras interessantes e preciosas edições críticas de fontes quinhentistas e seiscentistas, além de trabalhos acadêmicos em suas respectivas especialidades. Vale ainda destacar seu esforço conjunto de tradução anotada do relato do viajante Anthony Knivet.

Ingleses no Brasil traz uma seleção de doze textos que abordam as peripécias de viajantes ingleses que estiveram na Terra brasilis entre 1526 e 1608. Há grande diversidade entre a forma e o escopo dessas fontes históricas, assim como nas motivações que haviam trazido tais visitantes a estas paragens do Novo Mundo. As organizadoras estruturam a obra segundo três categorias de viajantes: corsários, mercadores e aventureiros.

Fontes coloniais

Os relatos de corsários se referem sobretudo a expedições predatórias contra Salvador e Recife, especialmente durante o período da União Ibérica, marcado por hostilidades e tensões diplomáticas entre os Tudor ingleses e os Habsburgo espanhóis, originalmente motivadas pelo divórcio de Henrique 8º e Catarina de Aragão e aprofundadas pelas querelas religiosas entre católicos e protestantes que incendiavam a Europa à época. As expedições mercantis, por outro lado, marcam um período anterior à anexação da Coroa portuguesa, em que dinâmicas de colaboração entre britânicos e lusitanos não eram incomuns. Os aventureiros, por seu turno, são figuras como Roger Barlow, integrante da famosa expedição de Sebastião Caboto em 1526, ou o náufrago Peter Carder, que viveu nove anos entre índios e lusitanos.

O livro permite outros vislumbres sobre a sociedade colonial em vias de formação

As fontes representam diversos gêneros textuais, desde epístolas até documentos judiciais, além dos costumeiros relatos de viagem. Por sua própria natureza, esses textos apresentam perspectivas e estéticas diferentes sobre o Brasil. Contrastam o olhar pragmático de autores como Thomas Grigges, tesoureiro do navio Minion of London, e aqueles do aristocrata Richard Hawkins ou de Barlow, olhares marcados por uma curiosidade erudita, capaz de satisfazer um público de diletantes europeus sequiosos por informações sobre o Novo Mundo.

O livro é particularmente interessante para o leitor brasileiro por trazer textos que não integram o costumeiro cânone de fontes coloniais sobre o Brasil, como os relatos jesuíticos ou as crônicas francesas, permitindo outros vislumbres sobre a sociedade colonial em vias de formação. Nesse sentido, os relatos das expedições de corso interessam à medida que expõem tensões sociais, caso dos índios que pegam suas canoas para buscar a expedição de Withrington e Lister contra a Bahia em 1587 ou de escravizados que escapam do Recife para se unirem aos corsários de James Lancaster em 1595.

Um dos conjuntos documentais mais fascinantes diz respeito à viagem do Minion of London, vindo a Santos em expedição comercial articulada com mercadores londrinos por John Whithall, inglês residente na capitania de São Vicente e bem entrosado com as autoridades locais. O episódio é bastante revelador da elasticidade e plasticidade das relações que se estabeleciam entre os diversos agentes históricos nas duas margens do Atlântico, cujos interesses nem sempre eram os mesmos das potências das quais eram súditos, ocasionando a formulação de alianças e iniciativas às margens da política oficial metropolitana, direta ou tacitamente apoiadas pelas autoridades coloniais.

Merece destaque também o depoimento do agente comercial John Wardall, que relata o confronto entre indígenas, franceses e a tripulação do Barbara of London, em 1540 — uma oportuna lembrança sobre a fragilidade da ocupação lusitana no Brasil até meados do século 17, um projeto colonial que ainda encontrava grandes desafios entre os nativos e outros concorrentes europeus.

De modo mais amplo, o livro desperta atenção para a presença britânica no Atlântico Sul, muitas vezes eclipsada pelas iniciativas francesas e holandesas coetâneas. Ingleses no Brasil traz um rico posfácio em que as organizadoras contextualizam os textos traduzidos, notas críticas que cotejam os documentos a outras fontes em torno dos mesmos episódios e uma excelente bibliografia, convidando o leitor ao aprofundamento na fascinante temática.

Quem escreveu esse texto

Luiz Fabiano Tavares

Historiador, publicou Entre Genebra e a Guanabara: a discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks) e Da Guanabara ao Sena: relatos e cartas sobre a França Antártica nas guerras de religião (Eduff).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.