História,

Reflexões do exílio

Cartas de André Rebouças refletem a grandeza de um dos maiores abolicionistas do Brasil

01mar2023 | Edição #67

Nascido na Bahia em 1838, André Rebouças cresceu no Rio de Janeiro, onde formou-se engenheiro civil e militar. Sua atuação profissional rendeu-lhe o mérito de ter participado de projetos fundamentais à modernização do Império. Grande intelectual e abolicionista, frequentava espaços de elite, inclusive da nobreza. Sua vida ilustra os limites e as possibilidades de ascensão dos negros e mestiços livres no Brasil oitocentista.


Cartas da África, de André Rebouças, são parte fundamental da memória escrita do grande intelectual e abolicionista

A partir da leitura de sua memória, é possível apreender tensões e conflitos tanto dele quanto da sociedade em que vivia. As Cartas da África, publicadas agora pela Chão, são parte fundamental dessa memória escrita. Do ponto de vista subjetivo, refletem um momento de reviravolta na sua autoconstrução a partir do fortalecimento de sua identidade racial.

Ao longo da vida, Rebouças vai aprimorando seu senso crítico e construindo-se enquanto abolicionista. Segundo sua compreensão, a Abolição requeria um conjunto de reformas. Ainda na década de 1870, ele passa a desenvolver uma “fórmula agrícola emancipadora”: estudos que culminam no cerne de suas propostas, seu conceito de “Democracia Rural Brasileira”.

Os escritos refletem um momento de reviravolta a partir do fortalecimento de sua identidade racial

Para Rebouças era fundamental oferecer, além da liberdade, subsídios para uma existência digna. Nesse sentido, a educação e o direito sobre um pedaço de terra protagonizavam seus ideais. Monarquista, acreditava na viabilização de seus objetivos pelas mãos de d. Pedro 2º. Uma vez proclamada a República, que ele logo compreende ser uma “maldita república militar escravocrata”, opta pelo exílio. Nesse momento, cessa de escrever nos diários, hábito que cultivava desde 1863, e passa a transcrever as cartas enviadas.

Desassossego

Suas cartas, como o livro organizado por Hebe Mattos atesta, revelam o seu desassossego em testemunhar a continuidade de séculos de um projeto de exclusão em sua pátria. “Não sendo mais possível fazer idílios sobre o Brasil”, Rebouças passa a “idealizar a África”. Assume, então, “sua alma africana” e decide partir para o continente ancestral.

Em Cartas da África, primeiro de uma série com mais quatro volumes a serem publicados pela Chão, entramos em contato com as férteis e sensíveis ideias do “Negro André”, como assina pela primeira vez ainda em Cannes, em outubro de 1891.

“O continente de seus pré-avós” é escolhido para ser o lugar derradeiro de seu corpo. Sonhador incorrigível, cumpria, ainda, sonhar e trabalhar na propaganda de sua democracia rural. Arrebata-lhe, no entanto, o testemunho reiterado da “hedionda exploração de escravagismo” também em África. André sucumbe ao perceber que suas reformas novamente não encontram acolhida. Desiste de terminar seus dias no “continente mártir” e percorre novamente o Atlântico rumo à Ilha da Madeira, onde morre em 1898.

As Cartas da África refletem toda a grandeza de um dos maiores abolicionistas da História do Brasil. Muito ainda deverá ser produzido sobre as tantas e férteis ideias — várias delas atuais, a exemplo da questão agrária — de um homem negro que dedicou sua vida à transformação dos lugares a que sabia pertencer. Mostram, ainda, a face mais madura de sua compreensão da sociedade e da própria história. Ao assumir sua alma africana, Rebouças expõe os dilemas, tão bem analisados no posfácio, de ser homem e negro numa modernidade racializada.

O livro honra o legado do intelectual e ativista. Por terem sido escritas no exílio, momento tão potente — dada a maturidade do escritor — quanto sensível — pela vulnerabilidade própria do desenraizamento —, o contato íntimo proporcionado pela leitura de suas cartas tende a significar um encontro transformador. “Tenha ou não tenha tempo”, ele escreve em carta ao amigo J. C. Rodrigues, “é preciso que me leia, que me ouça através do oceano”.

Quem escreveu esse texto

Anita Pequeno

É pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco.

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.