Estética, História,

Olhar em revolução

Para o filósofo francês Didi-Huberman, a revolta contra o horror começa pelo modo como enxergamos as imagens de opressão e de resistência

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Como imaginar o horror mais radical? “O mais terrível não era a violência em si, mas o fato de ser produzida por outro homem” — costumam dizer as vítimas. Que um homem deixe de olhar o outro como seu semelhante para se permitir todo tipo de abuso, não é isso mesmo o irrepresentável, o colapso total do sentido? 

Podemos realmente transpor em imagens o buraco negro que absorve as vítimas? É possível materializar em um lugar a violência inefável que quebrou a confiança no mundo (em Auschwitz-Birkenau, por exemplo)? Ou devemos, a fim de respeitar o sofrimento das vítimas, abster-nos de mostrar o âmago do trauma? E então valorizar, no sentido contrário, os gestos de resistência e solidariedade, os momentos de esperança, apesar de tudo, no olho do furacão?

São essas as perguntas vertiginosas, antropologicamente profundas e politicamente urgentes, que circulam entre Cascas e Levantes, duas publicações de Georges Didi-Huberman que chegam agora ao público brasileiro.

Faz tempo que o filósofo e historiador de arte francês questiona os poderes da imagem, para além de todas as tradições metafísicas que, de Platão a Baudrillard, desacreditam-na como, no máximo, uma cópia desbotada da realidade, ou, na pior das hipóteses, mentira e simulacro. Desde suas primeiras obras, sua proposta é educar o nosso olhar, mostrando que é preciso documentar uma imagem incansavelmente até que ela faça sentido para nós, prestarmo-nos ao trabalho permanente de sobreposição e comparação de testemunhos escritos e visuais, isto é, de uma montagem que pressupõe menos um reenquadramento das imagens que uma fusão de temporalidades. 

Esse escritor de estilo algo lírico, cuja alegria de expressão muitas vezes surge no desviar-se do caminho melancólico da erudição, não cessa de dirigir o olhar às pequenas coisas, aos pedaços de filme onde mal se vê alguma coisa, a cacos de levantes que mal começaram a cristalizar, ao momento mais elementar das paixões revolucionárias.

Nestas duas publicações, Didi-Huberman tem o passo mais leve. Como se tivesse lastreado a si mesmo de uma sapiente bagagem para, em seguida, poder dela se livrar melhor. Isso não o torna, no entanto, menos vigilante. Ao contrário: ele recupera a confiança da criança que, às portas da sabedoria, interpõe a nós, adultos, as perguntas mais simples e mais aterradoras. Esse leitor voraz parece ter largado sua biblioteca na entrada. Uma entrada que, para nós, é dupla.

As fotos tiradas de uma câmara de gás em 1944 são os únicos testemunhos visuais da Shoah do ponto de vista das vítimas

De um lado, temos o portal de Auschwitz-Birkenau, lugar carregado de sofrimento, no qual Didi-Huberman, em Cascas, se apresenta como um visitante qualquer, apanhando algumas lascas de cascas em meio às bétulas (origem da palavra “Birkenau”). De outro, o guichê de uma exposição itinerante, atualmente em cartaz em São Paulo, e seu catálogo, Levantes, espaço de resistência do qual o filósofo se faz sóbrio curador. Num caso como noutro, Didi-Huberman não impõe a própria leitura às imagens, mas busca amplificar o eco de cada uma por meio de breves reflexões poéticas. O catálogo, polifônico, traz textos de Judith Butler, Antonio Negri, Marie-José Mondzain, Jacques Rancière e Nicole Brenez que multiplicam os pontos de vista sobre o levante. A exibição de imagens de objetos, gestos, palavras, conflitos e desejos que se soltam pelos quatro cantos do mundo nos ensina como, do século 19 ao 21, o sofrimento da humilhação às vezes reverteu em resistência e subversão.

De Cascas a Levantes, o trânsito entre o “lugar de memória” e a exposição itinerante nos permite ver a passagem do sofrimento à resistência, da sujeição à rebelião, o momento emancipatório no qual insiste nosso autor. Nas duas publicações, quatro imagens desempenham papel central. Tomadas desde uma câmara de gás em agosto de 1944 por Alex, membro do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau (formado por judeus forçados pelos nazistas a trabalhar e a fazer a máquina de destruição funcionar, eles mesmos condenados ao extermínio), essas fotografias são os únicos testemunhos visuais da Shoah feitos do ponto de vista das vítimas.

Ao percorrer, em Cascas, o local mais simbólico do extermínio dos judeus, Didi-Huberman se detém diante de três das quatro fotografias, tais como foram apresentadas pelo museu de Auschwitz. Por que foram focalizadas, recortadas e ampliadas, dando a impressão de um documento objetivo sobre a realidade dos campos? Por que uma foto desapareceu? Ele observa que essa operação estetizante, resultado da boa intenção do museu para edificar o público sobre os crimes ali cometidos, faz sumirem as precárias condições de produção das fotos. Suprimir os instáveis enquadramentos originais faz desaparecer o que expressava, no desequilíbrio da imagem, a urgência e a precipitação do testemunho, a morte iminente caso o ato de fotografar fosse surpreendido, a ausência de horizonte dos prisioneiros destinados ao extermínio. Em sua perambulação, Didi-Huberman faz uma pergunta crucial que parte dos detalhes topográficos mais simples: Auschwitz, como lugar de memória no século 21, precisa reenquadrar e manipular a verdade, com o risco de traí-la, para falar de Auschwitz como lugar de barbárie do século 20?

A inscrição das quatro fotografias no tamanho original e sem cortes na vasta sequência da exposição Levantes assume então todo o seu significado, como explica o autor na entrevista que acompanha Cascas: essas imagens não testemunham apenas a barbárie dos campos, mas também o ato de resistência que foi necessário construir, coletivamente e com pequenos gestos, para obter esse testemunho (como introduzir uma câmera fotográfica desmontada, peça por peça, dentro do campo, esconder o pedaço de filme em um tubo de pasta de dente…). É verdade que essa revolta do olhar e essa esperança de transmissão são, talvez, tudo o que resta quando o levante é condenado ao fracasso. Mas são também, de forma mais fundamental, o início inevitável.

Início de um filme, início de um levante. Em todos os casos, quem se revolta contra a injustiça, o horror e a humilhação é, antes de tudo, o olhar. Um olhar que de súbito se eleva sobre o opressor e que pode desencadear certos gestos, induzindo os corpos a se levantar. Os corpos são apenas o sinal mais visível e a sequência lógica, patética (no sentido positivo que o autor confere ao termo pathos), de uma revolta que já estava em andamento.

Pois tudo começa com a restauração da dignidade daquele que enxerga. E justamente, de uma casca de bétula a uma floresta de imagens cosmopolitas, não seria a esta revolução do nosso próprio olhar que nos convida Georges Didi-Huberman? [Tradução de Laura Valente Schichvarger]

Quem escreveu esse texto

Marc Berdet

Doutor em filosofia e sociologia pela Sorbonne, é autor de Fantasmagories du capital (La Découverte).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.