História,
O batuque da poesia
Em uma conferência no início dos anos 1930, Cecília Meireles retratou o legado africano na vida cotidiana do Rio de Janeiro
01nov2019 | Edição #28 nov.2019Batuque, samba e macumba, o livro de Cecília Meireles relançado pela Global, é de certa maneira tributário de um dado da biografia da artista: Cecília nasceu no bairro carioca do Rio Comprido, em 1901, e mudou-se ainda criança para Estácio de Sá, onde cresceu e estudou. A região é marcada no Rio por ter sido berço de um tipo peculiar de samba e pela quantidade de terreiros de umbanda e omolocô, a chamada “macumba carioca”, que espalhavam a sonoridade de seus tambores pelas esquinas e ladeiras que levavam ao Morro de São Carlos.
O Brasil republicano das primeiras décadas do século 20 — refiro-me aos donos do poder e aos intelectuais — parecia não saber o que fazer com a presença dos descendentes de africanos escravizados e a fortíssima presença das culturas oriundas da diáspora na nossa formação. Havia certo consenso de que a solução para o problema da identidade nacional brasileira passava pelo branqueamento.
Um intelectual respeitado naqueles tempos foi Oliveira Vianna, sabichão que escreveu Evolução do povo brasileiro em 1923. Segundo ele, a chance do Brasil era a nação embranquecida: a imigração europeia, a fecundidade dos brancos, maior do que a das raças inferiores (negros e índios), e a preponderância de cruzamentos felizes, nos quais os filhos de casais mistos herdariam as características superiores do pai ou da mãe branca, garantiriam ao país um futuro brilhante e branquelo.
Enquanto eugenistas como Oliveira Vianna vociferavam e clamavam pela redenção do Brasil pela Europa, o Rio de Janeiro fervilhava em sonoridades, cheiros, temperos, vestimentas, formas de celebrar a vida e louvar os mortos derivadas das encruzilhadas em que as Áfricas plurais se encontraram do lado de cá do Atlântico.
São essas africanidades cariocas que, para desespero dos eugenistas, Cecília busca retratar em uma série de desenhos e na conferência “Batuque, samba e macumba”, no início da década de 1930. Fazendo uso de lápis de cera, aquarela, carvão e nanquim, ela pinta a presença das baianas no cotidiano carioca, com suas batas engomadas, colares, pulseiras, panos das costas, sandálias, turbantes e figas de guiné.
Retrata também os bambas batuqueiros, ritmistas dos ranchos, blocos e cordões carnavalescos; valentões das rodas de pernada da praça Onze, herdeiros das antigas maltas de capoeiragem dos tempos do Império. O carnaval popular, muitas vezes reprimido pelos agentes da força pública, aparece em Cecília com as marcas do folguedo e da cordialidade. No texto que ilustra o carnaval dos bambas, a autora chega a falar em uma índole boa e conciliadora dos negros, que se provocavam nas danças de umbigada sem que, todavia, ninguém caísse.
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Finalmente, a última parte do trabalho procura retratar a macumba. A expressão, popularíssima no Rio à época, servia para designar uma série de ritos afro-brasileiros, dos candomblés que cultuavam orixás aos terreiros de umbanda que louvavam caboclos, pretos velhos, crianças e exus. Na mesma época, a expressão “macumba” chegava com força à nascente indústria fonográfica brasileira. Em outubro de 1930, para ficar em apenas alguns exemplos, Elói Antero Dias (o Mano Elói) e Getúlio Marinho (o “Amor” do Estácio) gravaram, acompanhados pelo Conjunto Africano, a faixa “Macumba (Ponto de Ogum)”.
O olhar curioso e amoroso de Cecília soa como um grito em defesa da liberdade de culto
Com certa ingenuidade, Cecília acaba reproduzindo nos textos que acompanham os desenhos algumas visões sobre o complexo religioso afro-brasileiro um tanto marcadas pelo binarismo da percepção de mundo judaico-cristã. Faz isso, por exemplo, quando divide a macumba entre o canjerê (culto de origem banto baseado na invocação dos ancestrais) e o candomblé, considerando que a diferença entre eles é que um trabalha para o bem e outro para o mal. Apresenta ainda uma visão um tanto mecânica do sincretismo entre entidades africanas e santos católicos, desconsiderando as complexidades do processo que amalgamou orixás e santos cristãos na diáspora, e retrata Exu e Oxalá a partir da dualidade entre o diabo e deus, coisa que sabemos impertinente na cosmogonia dos iorubás.
A despeito dessas questões, salta do belíssimo trabalho de Cecília Meireles o desejo de resolver o problema brasileiro a partir do recorte da cultura. Se a história do Brasil é marcada pelo signo da tragédia, a cultura resultante disso seria capaz de nos redimir. A poeta busca valorizar amorosamente o legado africano na nossa formação, ainda que resvalando em uma visão que não consegue, muitas vezes, superar percepções folclorizantes e pitorescas desse legado, sobretudo quando aborda o complexo religioso que dele deriva.
Feita a observação, é necessário reconhecer o inestimável valor da reedição de Batuque, samba e macumba. Pelo olhar, traço e pena de Cecília passeiam pembas, guias, atabaques, assentamentos, vestimentas de entidades, transes, passos de samba, chocalhos, ganzás, coroas de orixás. Num momento em que terreiros eram constantemente invadidos e objetos sagrados eram apreendidos pela polícia, o olhar curioso e amoroso de Cecília soa como um grito em defesa da liberdade de culto. Nos dias de hoje, quando novamente centenas de terreiros são vítimas do terrorismo religioso e do racismo, é esse mesmo grito que precisa ecoar.
Por fim, confesso especial predileção pelo trecho em que Cecília aponta o terreiro como o local para as cerimônias das macumbas, a não ser quando há uma consulta dos brancos aos orixás nos “palacetes da Zona Sul” do Rio. A menina Cecília, crescida no pé do Morro de São Carlos, bem distante desses palacetes da Zona Sul, matou a charada sobre certa elite brasileira: mesmo quando aparentemente pretende integrar, a turma do palacete não consegue deixar de olhar o mundo a partir do alpendre de uma casa-grande fascinada e amedrontada com os sons que saíram das senzalas para nos civilizar.
Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.