História,

Nas garras da Gestapo

Documentos secretos recém-divulgados e livro sobre campo onde Olga Prestes morreu renovam interesse sobre sua vida

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

As novas são sensacionais: abriram-se à consulta os arquivos secretos da Gestapo. Levados para Moscou pelos conquistadores russos ao fim da ocupação da Alemanha, agora estão recebendo pesquisadores, facilitando estudos e publicações. É valendo-se dessa inestimável fonte que Anita Leocadia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benario, presenteia os leitores com novo livro sobre a trajetória de seus ilustres pais, em contribuição fundamental e antes sigilosa à saga da esquerda, não só do Brasil.

Conforme ficamos sabendo, e embora entre nós sua evocação fosse por meio século amordaçada, a pasta contendo o material relativo a Olga é a maior do arquivo, com cerca de 2 mil documentos. Nela figura a correspondência oficial dos algozes, com preciosas anotações sobre as decisões a ela concernentes. Mas também acham-se ali algumas das cartas trocadas entre ela e o marido, que num assomo de perversidade não foram entregues aos destinatários. A maioria já fora publicada pela filha.

Embora surgido há pouco, já ganhou reputação um livro frequentemente citado por Anita Leocadia: o enorme volume que Sarah Helm escreveu sobre o campo de concentração só para mulheres de Ravensbrück, aliás título do livro, que acaba de ser publicado no Brasil. 

Ali fala-se muito de Olga, e ficamos sabendo de sua posição como blockova, ou responsável de bloco residencial. Uma das ignomínias dos nazistas era, como se sabe, colocar judeus em posição de poder — os kapos —, responsabilizando-os pela disciplina e jogando-os contra os demais. 

Pelos critérios nazistas, Olga era duplamente culpada, judia e comunista. Pior ainda, já era procurada pela polícia como criminosa foragida desde antes da guerra, quando participou de um atentado, aliás bem-sucedido, para libertar da prisão de Moabit um companheiro de militância. Dali partiu para a clandestinidade, para só reaparecer bem mais tarde na Rússia. Após um período de treinamento em Moscou, tornara-se altamente colocada na hierarquia do Partido. Sua missão junto a Prestes deu-se a serviço do Komintern, a Terceira Internacional, que unia os partidos comunistas de todo o mundo.

Ravensbrück

Em Ravensbrück, no entanto, sua personalidade vigorosa e seus talentos tornavam-na de difícil classificação: havia um bloco de moradia exclusivo para comunistas e outro só para judias. Apesar disso, em que pesem os minuciosos e rigorosos critérios de pesquisa de Sarah Helm, nada surge que a desabone. As lembranças de sobreviventes mostram gratidão a ela, em reconhecimento de sua força de caráter e dedicação aos outros.

Helm descreve os rigores do campo com base em farta documentação e entrevistas com sobreviventes

Logo após a guerra, o mistério que circundava o percurso de Olga começou a ser desanuviado, pelo menos fora do Brasil, quando surgiu o primeiro livro a seu respeito. De autoria de Ruth Werner, saiu na Alemanha Oriental em 1961, com reedição em 1984 juntamente com a primeira exposição, na Galerie Olga Benario, de Berlim. Sarah Helm acusa o livro de ser quase uma hagiografia, destinada à propaganda soviética.

Quanto ao seu, trata-se de um calhamaço de 924 páginas que faz uma descrição dos rigores do campo, com base em farta documentação e entrevistas com sobreviventes que ela rastreou pelo mundo afora. Traz muitas fotos e depoimentos. O histórico de Ravensbrück — essa raridade que é um campo de concentração só para mulheres — é levantado nas diferentes feições que assumiu ao longo do tempo, com revelações sobre a vida social das detentas, das mais variadas origens, desde militares do Exército Vermelho até ciganas, prostitutas, artistas, cientistas e intelectuais.

Quanto a nós no Brasil, passaram-se décadas durante as quais se cochichava sobre o tremendo crime contra a humanidade perpetrado por Getúlio Vargas e Filinto Müller. Entregar aos nazistas a judia Olga, grávida e condenada à revelia pelo atentado na prisão de Moabit, não comportava ilusões sobre seu destino ser o extermínio. 

Finalmente, o livro de Fernando Morais (1985) revelou a história e recuperou da obscuridade muito material a respeito. O escritor ainda teve a oportunidade extraordinária de entrevistar Luiz Carlos Prestes. Depois disso, viria o belo filme Olga, com Camila Morgado e Caco Ciocler, dirigido por Jayme Monjardim (2004). E, embora menos conhecida, surgiu a ópera homônima, que em São Paulo foi exibida no Theatro Municipal. E não se diga que não era fascinante ver os atores no palco cantando a Internacional, naquele espaço tradicional de monopólio de classe, enquanto a plateia fazia coro. Os alemães, por sua vez, fizeram um excelente documentário, que passou aqui na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Olga Benario — Uma vida pela revolução (2004), dirigido por Iyitanir Galip.

Quem vai à Alemanha Oriental espanta-se, diante das décadas de silêncio no Brasil, com a frequência do nome de Olga Benario em lugares públicos. É nome de rua em Berlim, estátua no campo de concentração de Ravensbrück, efígie em selos e moedas. Seu nome batizou cerca de uma centena de ruas e praças, escolas e creches espalhadas por todo o país: as crianças aprendem sobre ela na escola. A bem dizer, lá é uma heroína, aqui até mesmo seu nome era tabu. 

Mas Anita Leocadia contribuiu em muito para retirar os véus que encobriam essa figura revolucionária internacional do século 20. Já são vários os volumes que publicou que resgatam a vida de seus pais. Até o índice onomástico homenageia duas guerreiras. Uma é aquela a quem deve a vida, a avó Leocadia, que moveu céus e terras na campanha para retirá-la do campo nazista — lugar onde, como mostra Ravensbrück, matar bebês de fome era diretiva. 

Outra, compreensível para quem tem pai e avó gaúchos, é a guerrilheira que atuou nas batalhas de libertação em mais de um continente — Anita Garibaldi, que tem estátuas  em Roma e em Nice.

Quem escreveu esse texto

Walnice Nogueira Galvão

Organizou a edição crítica de Os Sertões (Ubu), de Euclides da Cunha.

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.