História,

Enfim, sós

Em duas obras portentosas, Georges Minois reconstitui a história daqueles que decidiram dar as costas aos seus contemporâneos

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

No filme Monsieur & Madame Adelman, comédia francesa de 2017, existe uma cena desconcertante. Victor, o sr. Adelman do título, vai ao hospital visitar o terapeuta com quem se consultou durante anos e que agora está idoso e doente. Sem muita cerimônia, puxa uma cadeira e começa a se lamuriar acerca de sua vida sentimental, indiferente ao sofrimento do outro, como se estivesse em uma sessão de análise. O psicólogo, exaltado, coloca Victor para fora do quarto de hospital e então murmura para si: “O silêncio… o silêncio, a morte, que bom”.

Existe, claro, um efeito cômico pela tranquilidade do terapeuta diante do fim. Mas, para alguém que passou a vida inteira ouvindo histórias de frustração e desencanto, o silêncio e a morte parecem uma recompensa bem-vinda. O recado subliminar para os espectadores é de como é difícil ter paz em nossa vida. Experimentamos a solidão como algo excepcional e a morte como um evento a ser evitado. E isso não vem de hoje. Afirma o clássico brocardo romano que onde está o ser humano está a sociedade (ubi homo ibi societas). Essa constatação simples é a síntese de nossa sobrevivência e de nosso fardo. O ser humano sempre foi um ser gregário por necessidade. Graças à coletividade, foi capaz de enfrentar predadores, derrotar inimigos e domar a natureza.

Contudo, essa ligação inescapável à sociedade pode ser também um destino penoso. Cada um de nós se encontra atado a seu tempo, a seu espaço e às suas circunstâncias por expectativas sociais que nos impõem a observância de determinadas condutas. Nossa individualidade pode ser, assim, solapada. É ao comportamento desviante, daquele que se recusa a participar da maratona da vida como os demais, que Georges Minois se dedica em dois portentosos livros. História da solidão e dos solitários analisa as escolhas de quem, desde a Idade Antiga, dá as costas a seus contemporâneos em busca do isolamento, e História do suicídio trata do que, segundo Camus, é o único problema filosófico realmente sério: tirar a própria vida.

“‘Não é bom que o homem esteja só’: essa é a reflexão que a Bíblia atribui a Deus depois da criação de Adão. Eis um mau começo. Assim, desde as origens, a solidão tem má reputação.” Dessa forma inicia História da solidão e dos solitários, que vai traçar o modo como o afastamento social tem sido visto nos últimos 2.500 anos.

Ainda antes da era cristã a solidão já era tratada com desconfiança. Uma vez que “mesmo os deuses não são sós”, a moral vigente na época impunha o dever da sociabilidade, observável inclusive nos mitos. O Hipólito de Eurípides vai constatar que “ser só é uma maldição”. Édipo, por sua vez, afirma em Colono que não cessou “de vagar sobre a terra estrangeira, exilado, mendigo”. Antígona é igualmente uma desgarrada, no seu ímpeto determinado de sepultar o cadáver do irmão. A propósito, afirma O livro dos mortos do Egito que “o defunto é um ser solitário”. Só na morte a inevitável solidão parecia aceitável.

A racionalidade greco-romana impõe o convívio social. O celibato é considerado anormal, assim como o solitário é o associal e o descrente é o ateu: todos tidos por anomalias. Platão e Aristóteles serão contra a solidão. O segundo diz que “o homem é um animal social, e a solidão, portanto, não é humana: aquele que vive como solitário é um monstro ou um deus, não é um homem”. Cícero defende que “nascemos para nos unir e formar com a sociedade uma comunidade natural”. Os exemplos são muitos, sujeitos a alguns contrapontos, como Epicuro e Sêneca, mais tolerantes com a ideia que temos hoje de solidão.

Miragens da solidão

Nas notas de Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar faz uma observação extraordinária: “Encontrei de novo num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e sublinhado por mim por volta de 1927, esta frase inesquecível: ‘Os deuses, não existindo mais, e o Cristo não existindo ainda, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem’. Grande parte de minha vida ia passar-se tentando definir, depois descrever, esse homem sozinho e, no entanto, ligado a tudo”.

Esse desamparo religioso é de fato momento raro na história de um ser pródigo em mitos e crenças. E vai ser na aurora do cristianismo que se dará o fenômeno de “fuga maciça de muitos milhares de indivíduos para o deserto, à procura da solidão”. Minois explica que tal movimento insólito se inicia no século 3 d.C. e que, no século 4, “assume uma amplitude tal que o poder político é levado a intervir em razão das perturbações sociais provocadas por esse êxodo. A corrida para o deserto provoca ainda um debate de fundo sobre os motivos, as vantagens e os perigos da vida solitária”.

Serão muitos os exemplos dos padres do deserto que viverão como eremitas, mas não raro atraindo multidões. Ocasionalmente vivem eles próprios em grandes grupos. Em uma localidade no Egito, no século 4, havia uma comunidade de cerca de 3 mil monges: “Mesmo quando comem, guardam um silêncio absoluto, de tal modo que se acreditaria que o lugar onde estão sentados está totalmente vazio. Vivem todos juntos, na multidão, como se estivessem na solidão, pois a abstinência de cada um é tão bem escondida que ninguém mais pode percebê-la”. Se lido com alguma dose de alegoria, poderíamos estar diante de adolescentes e jovens adultos grudados nas telas de seus celulares numa metrópole contemporânea. Talvez não haja tanto silêncio hoje, mas há certamente bastante solidão.

Um luxo tardio

A solidão vai atravessar os séculos como algo a ser evitado. Na Idade Média, será considerada algo assustador, um castigo, uma exclusão. É nela que se afirma que a “cidade favorece a solidão”, percepção bastante adequada ainda hoje. Na mesma época torna-se popular o fenômeno dos reclusos e das reclusas, pessoas que experimentam um afastamento voluntário da sociedade, mas de conduta bastante dúbia. Estão sempre cercados de empregadas, confessores, pedintes, curiosos, companheiros e admiradores. Trata-se de uma falsa solidão que faz das reclusas as mulheres mais bem informadas sobre as fofocas da cidade.

As razões da sua popularidade são três: sua origem social, pois são pessoas do povo; seu tipo de vida surpreendente, com penitências e extrema austeridade; e os “milagres” que praticam. São figuras controvertidas, que “de um lado fogem da multidão e de outro a atraem por suas performances de acrobata”. Estamos diante da espetacularização da solidão, um tipo de Big Brother medieval em que a virtude dá lugar à representação.

O início da modernidade verá o surgimento da imprensa e a popularização dos livros, o que vai atenuar o repúdio à solidão pelo prestígio adquirido pela “solidão estudiosa”. Montaigne será um exemplo de homem solitário, mas não misantropo. Ele vai dedicar um de seus ensaios à solidão e, no texto “Sobre três relações”, vai afirmar: “Mesmo em minha casa, no meio de uma família numerosa que é das mais visitadas, vejo muitas pessoas mas raramente aquelas com quem gosto de comunicar-me. […] Cada um se comporta de seu jeito e entretém seus pensamentos quem quiser: mantenho-me mudo, sonhador e fechado, sem ofender meus hóspedes”. Quem jamais se sentiu assim na noite de Natal que apedreje os solitários. 

Embora o século 18 ainda seja contrário à solidão, será nesse momento de ascensão da burguesia ao poder que a privacidade ganhará contornos de direito a ser protegido. O burguês demandará proteção a seus bens, aos seus contratos. A ideia de individualidade ganhará força. Com ela, em certa medida, o recolhimento e a solidão. No final do século 19, os advogados estadunidenses Samuel Warren e Louis Brandeis criam o marco do “direito de privacidade” delimitando-o como “o direito de estar só”. Por meio dessa definição objetiva, atualmente muito contestada, é que se fincou a bandeira do individualismo mais estrito.

Hoje o direito de privacidade está mais próximo ao controle de nossos dados pessoais, um grande desafio diante de tantas tecnologias movidas à coleta de dados. Mas o individualismo persiste. Com a multiplicação de plataformas em que cada um pode ouvir a música que desejar, acessar textos sobre os assuntos de que mais gosta e ver as séries preferidas atendendo ao comando de “seja você mesmo!”, perdemos um pouco a experiência do coletivo para experimentarmos os limites de nossos desejos. Ainda que para isso tenhamos que passar o almoço olhando para a tela do celular, sem falar com a pessoa à nossa frente.

Além de tardia, a experiência da solidão é classista. Os mais abastados terão casas com cômodos suficientes para abarcar a individualidade de cada um, enquanto os mais pobres terão que se amontoar em imóveis minúsculos onde privacidade e reclusão são bens imateriais tão em falta quanto suas demais carências. O paradoxo da solidão é que ela é desejada quando próxima da ideia de privacidade e repudiada quando remete a abandono e a esquecimento, diferença marcada por solitude e loneliness.

Vivemos em um momento de contradição. Ao mesmo tempo que a “afirmação do eu” é estimulada, gerando um certo isolamento, estamos permanentemente conectados aos demais por meio da internet. Para o historiador Philippe Artières, o homem perigoso é aquele “sem documentos”, aquele que escapa ao controle gráfico. Parafraseando-o, podemos dizer que o homem perigoso hoje é o “sem perfis” na internet, aquele que escapa ao controle das redes sociais e do escrutínio de seus pares. Como é estranho o sujeito que não está no Facebook ou no Instagram!, diriam muitos de nós.

Com frequência, a solidão física se disfarça pelo exibicionismo midiático. “O Homo communicans tem a impressão de nunca estar só”, afirma Minois. “O velho homem se sentia solitário porque era um, único e real; o homem novo é solitário porque é disperso, anônimo e virtual. Mas essa mesma explosão lhe dá a impressão de que não está mais só.” Minois indaga, afinal, qual dos dois é mais sozinho. Não sei se a resposta é relevante. O que os distingue, talvez, é o fato de a solidão do presente ser muito mais democrática: foram necessários 2.500 anos para que a solidão estivesse ao alcance de todos.

Saber se retirar a tempo

Professor de história nascido em 1946, Minois tem verdadeira obsessão pelo detalhe. Por isso seus dois livros têm pretensão enciclopédica. Em História da solidão e dos solitários, Minois cita, com propriedade, Platão, Aristóteles, Cícero, Sêneca, Petrarca, Montaigne, Descartes, Pascal, Rousseau, Durkheim, Hugo, Maupassant, Schopenhauer, Nietzsche, Cioran, Beckett, Kafka, Camus, Octavio Paz… Há uma preocupação em fazer a obra definitiva sobre o assunto. Essa é talvez sua principal força e, também aí, reside a crítica mais pertinente. O livro não chega a ser cansativo, mas exige fôlego do leitor para lidar com o que parece ser o desejo de esgotar um assunto. O mesmo pode ser dito de História do suicídio, minuciosa análise do “homicídio de si mesmo”. 

Alguns dados relativos aos suicídios na Idade Média são bem curiosos. Em mil anos, há uma ausência quase total de suicídios ilustres, contrariamente à Idade Antiga. A análise de 54 suicídios medievais nos informa que os homens se matam três vezes mais do que as mulheres; enforcamento, afogamento, morte por faca e precipitação são os métodos mais utilizados, o que é misteriosamente parecido com as práticas atuais. O mesmo se dá com a divisão sazonal, havendo maior incidência de suicídios em março, abril e julho — o que soa singular, pois são os meses pós-inverno europeu. Parece inusitado sobreviver ao inverno para se matar na primavera ou no verão. Mas igualmente estranho é a preferência pelas sextas e segundas-feiras.

O ponto central do texto é o famoso discurso de Hamlet sobre “ser ou não ser”. Não à toa o trecho se encontra destacado na epígrafe do livro. De tanto ser citado, adaptado e parodiado, o impasse hamletiano perde a força se não for lido com atenção. Trata-se da síntese do dilema máximo, se viver vale mesmo a pena. De acordo com Minois, “um texto atemporal e universal, como demonstra seu grande sucesso. E, no entanto, um texto profundamente localizado no tempo e no espaço: 1600, na Inglaterra”.

Curiosamente, o suicídio parecia um assunto central nas artes inglesas em torno do ano 1600. Entre 1580 e 1620, foram encenados mais de 200 suicídios em uma centena de peças. Aparentemente, os espectadores do final do século 16 e início do século 17 adoram mortes voluntárias. Assim como no livro sobre a solidão, também aqui Montaigne desempenhará papel importante. Em seu ensaio “Costume da Ilha de Céos”, vai expor as teses favoráveis ao suicídio com tanta convicção que a Georges Minois parecerá clara sua aprovação. Contudo, por conta de sua dialética racional, Montaigne não vai se furtar a apresentar também as razões contrárias ao suicídio. Como síntese, ele não apresenta uma solução definitiva, mas conclui que compete a cada um tomar a decisão mais adequada. Shakespeare e Montaigne, dois escritores que trataram do suicídio em suas obras, não se mataram.

Passados 400 anos, o suicídio continua exercendo fascínio no mundo das artes. Filmes como A ponte (2006), de Eric Steel — que mostra o drama dos suicidas na Golden Gate, em San Francisco — e séries como 13 Reasons Why (2017), de Brian Yorkey, estimulam o debate público e ficam longe da unanimidade. Até que ponto a discussão traz bons frutos ou estimula a prática? Uma coisa é certa: precisamos superar o embate raso e maniqueísta que se indaga se o suicídio é coragem ou covardia. O mais importante são o debate público e a abordagem sistêmica da questão.

A obra de Minois cobre a prática do suicídio essencialmente até o fim do século 18 — os séculos 19 e 20 são tratados en passant. Por isso, a psicanálise é apenas entrevista, embora tenha muito a contribuir para o debate. Freud vai defender que todos nós temos um “instinto de morte” que pode assumir o controle se não for sublimado. “Por essa ótica, o índice de suicídio tende a aumentar nas sociedades mais organizadas, naquelas em que a violência exterior é a mais regulamentada, e o índice de suicídio seria, então, inversamente proporcional ao índice de homicídio.” Isso explicaria também por que o número de suicídios tende a cair em tempos de guerra.

Existem pontos de conexão entre a solidão e o suicídio, sem que haja necessariamente um nexo de causalidade entre eles. Em ambos os casos, o que se tem é alguém que se nega a viver nas regras impostas de sociabilidade. A solidão pode até ter aspectos positivos, mas em qualquer caso a lição que fica é a de que precisamos de mais empatia — palavra gasta pelo uso, mas prodigiosa em seu conteúdo. “Se um terceiro não consegue compreender, que dirá julgar”, diz Minois. É essa compreensão, essa racionalidade, que a leitura das duas obras propõe.

Nota do editor
O novo número do CVV — Centro de Valorização da Vida é 188.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Branco

É diretor do ITS Brasil e autor de Memória e esquecimento na internet (Arquipélago).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.