Direito, História,

Em causa própria

Com boa pesquisa, história da advocacia tropeça ao creditar aos advogados os frutos de conflitos sociais e processos históricos

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Foi longa a construção do moderno Estado de Direito. Os mais antigos registros escritos documentam inventários de bens e, ocasionalmente, regras de conduta e de obrigações. Em boa medida, textos religiosos que ainda hoje se fazem presentes, como textos da religião hebraica ou trechos da Bíblia, escritos há 2 mil anos, e muito do Alcorão, estabelecem regras para o comportamento dos indivíduos. O surgimento de sociedades complexas, com imensos aglomerados urbanos e domínio sobre vastas extensões de terra, tornou inevitável o desenvolvimento dessas normas e de mecanismos para a resolução de conflitos.

Em Como os advogados salvaram o mundo, José Roberto de Castro Neves propõe contar essa longa história como resultado da intervenção de advogados, com a criação de leis e de ritos judiciais. O panorama histórico do direito parte do século 4 a.C., quando se permitiu que cidadãos romanos fossem representados por terceiros, “procuradores in iure e in iudicio”, logo chamados de advocatus.

O leitor passeia pelo “redescobrimento” do direito romano, com a criação da primeira escola de direito do Ocidente, em 1070, na cidade autônoma de Bolonha. A iniciativa foi da condessa Matilde da Toscana, por sugestão do papa Gregório 7°, que então disputava com o imperador Henrique 4° o poder de escolha de padres e bispos. A escola passou a ser referida como universitas, e a guilda de professores, como collegia.

Em seguida, apresenta-se o pensamento de são Tomás de Aquino e narram-se a reforma protestante, o iluminismo jurídico, as revoluções Gloriosa, Americana e Francesa. 

Quando aborda a história brasileira, o autor destaca citação, feita em obra de Antônio Manuel de Carvalho Neto, que foi advogado, juiz e consultor jurídico do estado de Sergipe. “Quando Deus voltou ao mundo,/ Para castigar os infiéis,/ Deu ao Egito gafanhotos/ E ao Brasil deu bacharéis…”, diz a quadrinha, de autoria desconhecida, segundo o profético Carvalho Neto. Cerca de oitenta anos depois de o sergipano registrar os versos em livro, o país tem hoje mais de um milhão de bacharéis em Direito.

O relato de Castro Neves, distribuído por quase quatrocentas páginas, é fruto de extensa pesquisa. São listadas nada menos que 366 obras na bibliografia. O texto é descontraído, sem a afetação do juridiquês, que vitimiza os brasileiros a cada transmissão ao vivo do plenário do Supremo Tribunal Federal, às quartas e quintas.

Distorção

As virtudes do texto e da pesquisa contrastam com uma distorção presente em todo o livro — e evidenciada no título: atribuir a construção do direito com o protagonismo dos advogados, como se resultasse sobretudo da construção intelectual de juristas.

A interpretação do autor sobre o papel dos advogados na história tem três problemas: embaralha os causídicos, os pensadores do direito e a própria ciência jurídica; atribui a construção das instituições a figuras que se destacaram na história por meio de contribuições em outras áreas do conhecimento; e, especialmente, confere protagonismo a operadores do direito que, como ocorria com os velhos escribas, muitas vezes, apenas sistematizavam as soluções de compromisso construídas para mediar conflitos entre grupos sociais. 

A fragilidade do argumento é nítida, quando o autor aborda a reforma protestante e enaltece o papel do padre John Wycliffe, um de seus precursores. O teólogo, conhecido por sua tradução da Bíblia para o inglês, atacava a venda de indulgências e sustentava que a Igreja só retornaria à sua vocação definida por Jesus Cristo se abrisse mão de suas posses e abraçasse os ideais de pobreza. A argumentação — teológica, com repercussão econômica — rendeu-lhe uma condenação pelo papa Gregório 11º. O livro, porém, o caracteriza apenas como professor de direito canônico de Oxford, como se a sua relevante contribuição viesse exclusivamente da seara jurídica.

Castro Neves reduz à intervenção de advogados os imensos conflitos sociais que resultaram na criação de normas e procedimentos da sociedade moderna. “Na Revolução Francesa, cuja liderança coube a advogados, buscou-se primeiro o caminho da legalidade”, escreve. Havia certamente advogados na França de 1789. Havia também camponeses e burgueses, aristocratas que defendiam o velho regime e outros que propunham a adoção de uma monarquia constitucional, cientistas e matemáticos. Muitos pereceram durante o terror. Houve também Napoleão, general nascido na Córsega, que patrocinou um sistema legal influenciado pelas velhas normas legais do Império Romano e que sistematizou uma nova versão do velho código da época de Justiniano no século 6°.

O código napoleônico foi escrito por juristas, como Louis-Joseph Faure. Mas não se deve ignorar as peculiaridades do tempo e os imensos conflitos de uma França em guerra, depois de uma violenta revolução que demandava uma nova ordem. Seria como atribuir a construção das pirâmides no Egito ao mestre de obras. Os mais velhos talvez se lembrem de um filme em que o diabo, interpretado por Al Pacino, deleita-se: “Vaidade… Definitivamente, meu pecado favorito!”.

O autor atribui as regras do direito à da criação intelectual de advogados. Não foi bem assim. Esse processo decorreu, em grande medida, das soluções de compromisso construídas por grupos em conflito. Talvez o exemplo mais notável no último milênio seja o desenvolvimento da democracia liberal, iniciado com o conflito entre os barões proprietários de terras e os reis plantagenetas, duques normandos que conquistaram a Inglaterra em 1154. Eram frequentes os embates dos barões com a nova realeza, que necessitava arrecadar tributos para financiar o Estado e as suas muitas guerras contra vizinhos, sobretudo a França, e os árabes, no distante Oriente Médio. Foi expressivo aumento da arrecadação nos reinados de Henrique 3° e de seus filhos.

Os conflitos perenes resultaram em guerra civil em 1214, que terminou com um acordo entre os nobres e o rei, a Carta Magna, assinada em 1215, essencialmente um contrato com muitas cláusulas, como a que estabelecia que o rei não prenderia nenhum homem sem julgamento nem aceitaria pagamento por decisão judicial.

Nos séculos seguintes, houve novos conflitos e versões da Carta Magna em meio à construção de um arcabouço institucional que inventaria, em particular, o direito moderno. Acordos sucessivos entre a realeza e os barões evoluíram para princípios hoje usuais, como o direito de ser julgado por seus pares e o habeas corpus. Passou-se a esperar que a Justiça limitasse o arbítrio do príncipe em temas como a concessão de privilégios à custa do público.

Em uma longa história, recheada de conflitos violentos como a guerra civil do século 17 na Inglaterra, que resultou na decapitação do rei Charles 1° e no breve estabelecimento de uma república, talvez nenhum momento tenha sido tão marcante quanto a Revolução Gloriosa, de 1688.

Em um país anglicano, havia um rei católico, James 2°, e os conflitos se tornaram recorrentes. O rei retirava do cargo clérigos, como o arcebispo de Londres, e juízes que o contrariassem. A revolta foi desencadeada pelo anúncio de que a rainha estava grávida e pelo receio de que seu filho talvez viesse a seguir a religião do pai. Sete pares do reino convidaram o príncipe de Orange, casado com a filha do rei, ambos protestantes, a assumir o trono da Inglaterra. Esse evento pitoresco refletiu um desejo disseminado de uma sociedade que ansiava por uma nova ordem.

Foi curta a guerra para depor o velho rei, que morreu no exílio na França. Mais longa foi a negociação com o parlamento para definir as prerrogativas e obrigações do novo rei estrangeiro. O resultado foi a Carta dos Direitos (“The Bill of Rights”), que marca o início de uma revolução no Estado de Direito inglês, com a autonomia do Judiciário, a organização da relação entre o Poder Executivo e o parlamento e o começo das regras que permitiram a economia de mercado se desenvolver.

Thomas Hobbes inaugurou a moderna ciência política ao descrever uma versão idealizada do contrato social que prevê que os homens abram mão de parte da liberdade em favor do Estado, para que este garanta, por meio da força, se necessário, o cumprimento das cláusulas previstas no pacto. O absolutismo de Hobbes ignora, porém, que esse contrato social também tinha como objetivo limitar o poder do príncipe, além do desenvolvimento de sofisticados mecanismos institucionais para aperfeiçoar e implementar as regras que normatizam a interação social. 

Na contramão do que propõe Castro Neves, os advogados não foram os inventores do Estado de Direito, mas foram por eles inventados, em meio à jurisprudência que delimita as intervenções judiciais. O papel que exercem hoje foi inventado pelas novas regras do jogo da sociedade moderna.

Estados Unidos

A surpreendente história da Constituição dos Estados Unidos, recém-liberto da Inglaterra, os muitos conflitos entre as antigas colônias, a divergência sobre a escravidão e o receio de que um presidente tivesse a mesma autonomia do rei inglês resultaram em regras que procuram proteger o cidadão do poder do Leviatã. Foi a negociação política dos representantes dos estados, em 1787, em que havia advogados, senhores de terras, comerciantes e muitos outros, que resultou na solução de compromisso registrada pela Constituição americana. Os conflitos posteriores entre Judiciário e Executivo, na gestão justamente celebrada de John Marshall, inventaram a jurisprudência que fez da Suprema Corte árbitra de conflitos constitucionais.

Nos séculos 19 e 20, a Suprema Corte teve um papel relevante, como nas muitas decisões, com idas e vindas, sobre os limites para a intervenção do Executivo, a extensão do direito à liberdade de expressão e a possibilidade de limitar legalmente escolhas individuais e contratos livremente estabelecidos entre partes. As soluções não foram obra apenas do direito, mas o resultado da tentativa dos diversos atores em construir soluções para mediar conflitos existentes, tendo em vista as suas repercussões gerais.

A parcimônia da Suprema Corte, ainda que ocasionalmente destoe pela ousadia e reconheça os seus excessos, talvez seja o melhor contraponto à tese que Castro Neves tentou defender e em que fracassou. Houve Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis, Hugo Black, Felix Frankfurter e Thurgood Marshall. Houve muita inovação em meio ao reconhecimento de equívocos e a mudanças da jurisprudência. Vale a pena ler os relatos sobre as conflitantes decisões de Holmes, juiz da Suprema Corte no fim da década de 1910, que revolucionaram o direito à liberdade de expressão.

Os advogados não foram os inventores do Estado de Direito, mas foram por eles inventados

Em uma democracia, porém, cabe ao Congresso legislar, e a moderação da Suprema Corte deve ser cuidadosa, afinal o poder não eleito tem menos direito de errar (os erros aparecem nas consequências imprevistas das decisões). Em geral, é melhor confiar nos votos da maioria que em juízes iluminados. Por isso, os perenes debates na Suprema Corte sobre os limites da intervenção judicial.

As regras do jogo na democracia americana têm sido estabelecidas entre embates dos grupos sociais com as instituições de Estado. Houve uma Guerra Civil e seguidos conflitos entre Executivo, Legislativo e Judiciário que resultaram em novas regras quando mudou a correlação de forças ou estabeleceu-se uma nova visão majoritária sobre velhos conflitos.

O autor confunde causa e efeito. Em última análise, foi a velha política pragmática que moldou as instituições que consolidaram a democracia moderna, em meio a muitos conflitos, alguns dramáticos. Os advogados não salvaram o mundo. São apenas parte de instituições e regras construídas na longa história do Estado de Direito.

Como escreveu Holmes em 1881: “A vida do direito não decorre da lógica; ela decorre da experiência… O direito sistematiza a história do desenvolvimento de uma nação depois de muitos séculos, e ele não pode ser tratado como se fosse o resultado apenas de axiomas e corolários de um livro de matemática”.

Quem escreveu esse texto

Marcos Lisboa

Economista, é presidente do Insper.

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.