História, Política,
Animal político
Arquétipo do mineiro conciliador, Tancredo Neves ganha biografia com furos jornalísticos e alguns equívocos
05nov2018 | Edição #1 mai.2017Jornalistas não costumam dar conta do estado da arte nos temas que abordam. É o que sucede com Plínio Fraga na alentada biografia de 648 páginas que acaba de publicar com o título de Tancredo Neves, o príncipe civil. Convém, no entanto, que o leitor conheça esse estado para melhor avaliar o livro.
Tancredo Neves tem sido objeto de número razoável de estudos e biografias. Cito alguns. O primeiro, publicado em 1985, logo após a morte do político, foi Tancredo Neves: a trajetória de um liberal, de Vera Alice Cardoso Silva e Lucilia de Almeida Neves Delgado, esta última neta de Tancredo. Trata-se de ensaio analítico, seguido de longa entrevista concedida às autoras. Ainda em 1985, saiu Assim morreu Tancredo, depoimento do jornalista Antônio Britto, que acompanhou de perto os últimos dias do presidente, a Luís Claudio Cunha.
Mauro Santayana, jornalista e diretor da campanha presidencial de Tancredo, escreveu, também em 1985, Conciliação e transição: as armas de Tancredo. Lucilia de Almeida Neves Delgado voltou a falar do avô em 1988 com Tancredo Neves, suas palavras na história. Ronaldo Costa Couto, secretário de Planejamento de Tancredo no governo de Minas (1983-84), publicou em 1995 Tancredo vivo: casos e acaso. No ano seguinte, Tuffik Mattar voltou ao tema da morte em Por que morreu Tancredo Neves?. Luis Mir insistiu no tema em 2010 com O paciente: o caso Tancredo Neves. De longe, o livro de maior fôlego foi a biografia completa publicada pelo jornalista José Augusto Ribeiro em 2015, Tancredo Neves: a noite do destino.
Plínio Fraga cita esses estudos, mas não esclarece sua posição diante deles, não diz o que pretende trazer de novo. Sua proposta pode ser inferida apenas da promessa que faz de oferecer ao leitor uma grande reportagem jornalística sobre vida e tempo de Tancredo, sem emitir juízos de valor e sem fazer interpretações de natureza histórica ou sociológica. Pode estar aí subentendida velada crítica à literatura tancrediana anterior, escrita na quase totalidade por parentes e simpatizantes do político. A ser correta a hipótese, Plínio Fraga estaria dizendo que pretendeu escrever como um jornalista adstrito à concretude dos fatos. Historiadores não acreditam na possibilidade de tal objetividade quando se trata de coisas humanas, mas nada impede que se lhe dê um crédito de confiança.
Tancredo Neves, o príncipe civil é título que, apesar da ilustre paternidade (José Guilherme Merquior), não me parece feliz. Merquior referia-se ao Príncipe de Maquiavel, um chefe ousado, desafiador, capaz de, com sua força, sua virtù, torcer a fortuna a seu favor. Creio que os poucos leitores que conheçam Maquiavel não conseguirão enquadrar o conciliador Tancredo nessa definição. Por outro lado, a grande maioria dos não familiarizados com a obra do florentino vai entender a palavra príncipe em seu sentido corriqueiro de membro da nobreza. Se Tancredo não foi um príncipe maquiaveliano, muito menos se assemelhou a um príncipe dinástico. Pelo contrário, uma de suas marcas mais fortes era a atitude republicana, despojada, sem fumos aristocráticos. “Tancredo, o republicano” seria título mais adequado a seu perfil.
Furo jornalístico
Título à parte, vamos ao texto. Plínio Fraga fez, sem dúvida, extenso trabalho de levantamento de fontes. Divide com outras obras, sobretudo com a de José Augusto Ribeiro, o amplo uso de entrevistas (fez 57, contra 39 de José Augusto) e de jornais. Quanto às entrevistas, há maior diversidade em sua lista, ao incluir, por exemplo, adversários de Tancredo, como Newton Cruz e Paulo Maluf. Verdadeiro furo jornalístico é a entrevista que conseguiu com Antônia Gonçalves de Araújo, secretária de Tancredo por catorze anos. Talvez por pressões familiares, a figura de Antônia quase não aparece, ou não aparece com a devida relevância, nas outras obras. Está aí talvez uma das diferenças que o autor quis imprimir a seu trabalho: maior diversidade de fontes.
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A grande novidade do livro, no entanto, está no acesso que o autor teve a documentos antes não disponíveis. Entre eles salientam-se os do SNI (Serviço Nacional de Informações), digitalizados e abertos à consulta pelo Arquivo Nacional. Documentos produzidos por serviços secretos de ditaduras devem ser usados com cuidado porque os agentes muitas vezes escrevem o que seus chefes querem ou mandam. Com essa ressalva, eles lhe revelaram o alcance da espionagem e ajudaram a entender o complexo jogo de artimanhas que foi a campanha pelas eleições diretas e pelo voto no Colégio Eleitoral. Tancredo, aliás, sabia perfeitamente que estava sujeito à constante bisbilhotice dos agentes do SNI. Nunca discutia política ao telefone, na convicção de que estavam todos grampeados, e usava de estratagemas para fugir à vigilância dos arapongas.
Outra nova fonte de dados de que se beneficiou o autor foram as atas das reuniões do gabinete presidido por Tancredo durante a experiência cabocla de parlamentarismo (1961-63), também abertas à consulta no Arquivo Nacional. Embora se refiram a período menos dramático do que os de 1954, 1964 e 1985, enriquecem as informações sobre o funcionamento, ou não, do experimento, fracassado por falta de legitimidade política. A documentação da CIA liberada pelo governo norte-americano é também bem aproveitada, sobretudo sobre 1964.
Uma de suas marcas mais fortes era a atitude republicana, despojada, sem fumos aristocráticos
O leque mais amplo de entrevistas, a maior diversidade de fontes arquivísticas e o menor envolvimento afetivo do autor (tinha dezessete anos em 1985, e só em 2001 se envolveu, como repórter, em campanha eleitoral, a de Lula) conferem, de fato, a seu livro, marca distinta, no sentido de maior riqueza de informação, para não usar a palavra objetividade. A sobriedade do texto, com pitadas de humor, também torna a leitura prazerosa. A cuidadosa descrição dos últimos dias de Tancredo, desde a internação no Hospital de Base de Brasília, não deixa mesmo de comover, sobretudo aos que viveram aqueles tempos e deles ainda guardam viva memória.
O capítulo que traz maior novidade, sem dúvida, é o dedicado à entrevista já mencionada de Antônia Gonçalves de Araújo, concedida em 2013. Antônia era uma goiana 24 anos mais nova que Tancredo. Funcionária concursada da Câmara dos Deputados desde 1971, foi no ano seguinte alocada no gabinete de Tancredo, de quem foi secretária enquanto ele viveu. Despertava tal confiança no chefe que assinava documentos por ele imitando-lhe a letra. Declarou na entrevista ter sido Tancredo o amor de sua vida e não se casou depois da morte dele. É dela, a meu ver, a melhor definição de Tancredo, de que me apropriei para titular esta resenha: “Tancredo era um animal político”.
Ducha fria
Se o livro como um todo apresenta as qualidades mencionadas, se é a mais completa biografia de Tancredo até agora escrita, o mesmo não pode ser dito de seu epílogo. Intitulado “Dinheiro de sobra não sobra”, ele é um anticlímax, uma ducha fria no leitor. Vindo na sequência do excelente capítulo sobre a agonia e morte de Tancredo Neves, é deslocado e desfocado. Deslocado, porque devia ter sido incluído no capítulo que tratou da eleição indireta. Desfocado, porque conclui o livro falando de uma prática política, e não do biografado. Nele, o autor dedica-se a demonstrar a prática, já existente, embora não criminalizada, do financiamento de eleições por empresas e pessoas físicas. Esforça-se por esmiuçar o financiamento das campanhas de Tancredo, com amplo e acrítico uso de relatórios da polícia secreta da ditadura. Termina o epílogo, e com ele o livro, citando declarações de um filho de Tancredo sobre Hélio Garcia, em que xinga o então governador de Minas de filho da puta por se ter recusado a prestar contas dos gastos da campanha.
Seria ingenuidade achar que não houve aí esforço do autor de inocular na biografia de Tancredo ecos da batalha de hoje sobre financiamentos ilegais de campanha. O recado parece ser o de que as práticas hoje criminalizadas têm longa história e envolveram até mesmo um estadista do porte de Tancredo Neves. A ser assim, o autor estaria a reforçar a defesa dos hoje acusados de ilegalidade — todos fazem — acrescentando: e há muito tempo. Não me parece fecho adequado para a biografia de quem chama de príncipe civil. “Eu não merecia isso”, poderia dizer Tancredo do além-túmulo, repetindo as palavras que pronunciou em sua agonia. Os leitores também não merecem.
Dito isso sobre o livro, passo a fazer um pouco daquilo que o autor, compreensivelmente, não fez: um pouco de história e de sociologia. É lugar-comum definir o estilo mineiro de fazer política como envolvendo habilidade, astúcia e pragmatismo postos a serviço da conquista e manutenção do poder. Tal estilo surgiu no século 20. Nada semelhante houve nos séculos 18 e 19. O Setecentos mineiro, a Minas do Ouro, foi marcado por revoltas, liderados por exploradores e aventureiros, nas cidades e nos sertões. As lideranças que emergiam nada tinham de pacíficas, eram gente como Manuel Nunes Viana, Felipe dos Santos, os inconfidentes. Viviam em uma terra em que, como escreveu o conde de Bobadela, o pó das minas se metia nos narizes dos habitantes e punha ideias em suas cabeças, mais de rebeldia e de ruptura do que de conciliação.
À época da Independência, a produção do ouro já estava em decadência e a população mineira passava por processo de ruralização. A chegada da Corte em 1808 reforçara a demanda de produtos agrícolas que os mineiros da Zona da Mata e do Sul se encarregaram de suprir. Mesmo assim, no que se refere às lideranças políticas, nada ainda lembrava o estereótipo atual do político mineiro. Até 1842, as revoltas eram frequentes. Líderes como Bernardo Pereira de Vasconcelos, nascido em Ouro Preto, Teófilo Otoni, do Serro, e o visconde de Ouro Preto, também ouro-pretano e último presidente do Conselho de Ministros, conservadores e liberais, eram tudo menos conciliadores. O visconde, homem áspero, ficou conhecido pela resposta que deu ao general Deodoro, quando este, ao depor o ministério em 15 de novembro de 1889, alegou como justificativa os sofrimentos passados nos charcos do Paraguai. Retrucou Ouro Preto que não era sofrimento menor estar ali a ouvir o que dizia o general. Nem mesmo o marquês de Paraná, originário de Jacuí, sul de Minas, tantas vezes citado por Tancredo como precursor da ideia de conciliação, era um “político mineiro”. O marquês inaugurou, sim, uma política que ficou conhecida como de conciliação, voltada para pôr fim à guerra entre liberais e conservadores. Mas ele o fez com mão de ferro, sem negociação alguma, atropelando até mesmo os correligionários saquaremas.
Mosaico mineiro
Mudança significativa verificou-se após a Proclamação da República e a adoção do federalismo. O fulcro da economia mineira já se deslocara da mineração para a cultura do café na Zona da Mata e no Sul, enquanto o Norte mantinha sua base pecuária. A Minas do Ouro fora substituída pela Minas da Terra e formara-se o que o historiador John Wirth chamou de mosaico mineiro.
O impacto da mudança na política foi inevitável. De um lado, o centro de poder foi retirado de Ouro Preto e transferido para a nova capital (1897), sob a hegemonia dos políticos da Zona da Mata e do Sul. Por outro, a política federalista, chamada de política dos Estados, exigia a unificação da bancada mineira no Congresso. Coube aos novos líderes a tarefa da unificação e eles dela se desincumbiram com muita habilidade e com muito êxito, costurando um novo arranjo político em torno do Partido Republicano Mineiro. O processo foi estudado por Amílcar Martins, que nele viu a origem do que passou a ser conhecido, então com pertinência, de estilo mineiro de fazer política, marcado pela capacidade de negociação. O estilo predominou durante a primeira metade do século 20 até a emergência da Minas do Ferro, marcada pela industrialização da região central, antes centro aurífero. Hoje não existe mais. Foi dentro dele que Tancredo Neves fez seu aprendizado político.
Havia nuanças nesse estilo mineiro. Alguns políticos visavam apenas o êxito na conquista e manutenção do poder. O melhor exemplo disso foi Benedito Valadares. Outros, no entanto, em geral sobreviventes da Minas do Ouro, construíam alianças como meio de executar metas e defender ideais. João Pinheiro e Juscelino visavam implantar a modernização pela industrialização. Tancredo, um político em tempo integral, um animal político, também não buscava apenas o poder pelo poder. Seus ideais sempre foram a defesa da liberdade e a política social. Ao lado da liberdade e da democracia esteve quando se opôs ao Estado Novo, aos golpes de 1954, de 1961, de 1964 e ao governo militar.
Em 1964, perdeu as estribeiras pela única vez na vida ao chamar de canalha o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, por ter declarado a vacância do poder. Sua preocupação com o social pode se ter originado da experiência como advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São João del-Rei e da aproximação com Getúlio Vargas.
Na que diz respeito à liberdade, suas maiores vitórias se deram em 1961, ao articular a solução parlamentarista, e sobretudo em 1985, ao comandar a costura política que levou à retomada da democracia. A preocupação social esteve presente no apoio a Getúlio e a João Goulart e depois da eleição de 1985, quando em suas metas de governo incluiu a quitação de nossa imensa dívida social, conceito por ele cunhado.
Tancredo, com razão, queixou-se do destino que lhe fora reservado, condenado, como Moisés, a não entrar na terra prometida tão arduamente buscada. Lembro-me, no entanto, de uma história de José do Patrocínio. No dia da aprovação da Lei Áurea ele foi carregado em triunfo pelas ruas do Rio de Janeiro. Um amigo então observou: “Que belo dia para morreres!”. Patrocínio não morreu, e só teve dissabores pelo resto da vida. Com a morte, Tancredo, como Getúlio, saiu da vida, embora involuntariamente, e entrou para a história. Se tivesse tido de enfrentar a tarefa de reconstruir o país, talvez seu registro na memória nacional não fosse tão favorável.
Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.
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