Economia, História,

A política e seu preço

Livro narra cinco séculos de intervencionismo governamental na economia brasileira, com seus grandes fracassos e heróis ocultos

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Começo por uma indiscrição: Jorge Caldeira e eu trocamos manuscritos em janeiro de 2017, quando ambos terminávamos livros ambiciosos, e o dele, já praticamente pronto, se chamava História dos governos e do desenvolvimento no Brasil. Numa inspeção inicial, vi um compêndio sobre a recorrente baixa qualidade dos primeiros criando dificuldades sistemáticas para o segundo. Um assunto e tanto, tão assustador quanto atual: a intervenção do Estado na economia prejudicando o desenvolvimento, às vezes até de forma deliberada — como é possível uma coisa dessas?

Nos quinhentos anos cobertos pelo livro, com enorme frequência o governo de fato atrapalhou, sobretudo quando não era local, e raras vezes ajudou, em especial quando ausente. Depois de 1930, a correlação fica instável, quando não positiva, mas produzindo enormes efeitos: a ideia de que o governo devia ser o único demiurgo do nosso desenvolvimento parece se instalar como um mito inatacável, intransponível, que nem a hiperinflação nem todos os maus governos no caminho conseguiram abalar. 

Um título que se referisse a “maus governos” seria mais fiel ao conteúdo, para não falar em atualidade e apelo comercial, embora mais deprimente para o leitor cidadão. O título afinal adotado, História da riqueza no Brasil, possui certa mágica e me agradou de início. Talvez por evocar Leo Huberman, cujo clássico de 1936, publicado no Brasil em 1962 com o título A história da riqueza do homem, vendeu incríveis 300 mil exemplares e marcou gerações. Jorge Zahar, o editor, o descreveu como “o livro da minha vida”, ou “o que mais valeu a pena editar”, por seu papel “na formação política da juventude”. Seria ótimo se Caldeira tivesse o mesmo destino, pois as suas mensagens sobre a nossa história não têm recebido a atenção que merecem.

A bem da verdade, não é de riqueza que trata o livro, cujo eixo narrativo se revela no subtítulo, e na ordem inversa: governos, costumes e pessoas. Não é bem sobre o que se conhece como “política econômica”, assunto da coletânea organizada por Marcelo de Paiva Abreu (A ordem do progresso), tampouco sobre “economia política”, a chave para as 38 camadas de materialismo dialético que se revezam no domínio da nossa historiografia. Mas trata de ambas ao refletir sobre como o andamento da esfera política, em termos amplos, interferiu nas nossas possibilidades de desenvolvimento. 

Há muita novidade no livro, mas ele é sobretudo um notável aperfeiçoamento — e também uma extensão temporal — de teses trabalhadas em obras anteriores, que oferecem uma chave para entender esta História da riqueza no Brasil. Caldeira se notabilizou pelas biografias. Há trabalhos de menor fôlego sobre José Bonifácio e sobre o regente Feijó, e também sobre figuras da cultura popular ­— Noel Rosa e Ronaldo Fenômeno ­—,  e a bela coletânea de perfis 101 brasileiros que fizeram história (Estação Brasil, 2016). 

As mensagens de Caldeira sobre a nossa história não têm recebido a atenção que merecem

Mais ambiciosas, três espetaculares biografias, extensamente pesquisadas, constituem uma espécie de espinha dorsal da História da riqueza no Brasil. Para a análise da colônia, a chave é o segundo volume de O banqueiro do sertão (Mameluco, 2006), sobre o padre Guilherme Pompeu de Almeida, que viveu em Santana do Parnaíba no século 17, com monumentais 1.152 páginas (o primeiro, Mulheres no caminho da prata, é a origem da maior parte da antropologia e das magníficas histórias sobre miscigenação do novo livro).

Para o período seguinte, Caldeira valeu-se da pesquisa para a biografia de Irineu Evangelista de Sousa, Mauá: empresário do Império (Companhia das Letras, 1995), a mais conhecida e bem-sucedida, que funciona aqui como uma espécie de “romance de formação” que firma a identidade e o aprendizado desse novo historiador. Para a República, por fim, a do jornalista Julio Mesquita (Julio Mesquita e seu tempo, Mameluco, 2015), quatro volumes que somam 1.731 páginas, um quarto das quais apenas sobre historiografia econômica.

Provêm dessas biografias as principais teses dos livros “temáticos” de Caldeira (sobretudo A nação mercantilista, Editora 34, 1999, e História do Brasil com empreendedores, Mameluco, 2009, além de História da riqueza no Brasil), todos aptos à qualificação de “fortemente revisionistas”, e nenhum trazendo sequer uma tabela. Temos aqui um historiador que escreve em prosa, seja pela necessidade de contornar uma academia que o ignora (no que é correspondida, em boa medida), seja por procurar um universo maior de leitores inteligentes e não especializados. É um modus operandi quase único; o que há para criticar nesse estilo? 

A nação mercantilista, seu livro mais importante depois de Mauá, destoa desse cânone, afinal era a sua tese de doutoramento. Foi difícil purgá-la de jargão e torná-la mais legível fora da academia, a despeito da importância da ideia central, vastamente presente e revigorada em História da riqueza no Brasil: explicar o nosso pífio desenvolvimento econômico no século 19 a partir de “fatores internos”, ou seja, atacando frontalmente a ideia de um país “vítima de um sistema articulado de fora”, o famoso sistema centro-periferia e seu vezo isolacionista, ideia fundadora de “um tipo de pensamento que é parte do problema”. Sem dúvida, é um livro para atrair muito mais atenção do que recebeu.

A História do Brasil com empreendedores também é muito bem aproveitada na História da riqueza. A ideia central é que a mesma matéria de que Mauá era feito podia ser encontrada em vastas partes do sertão, e desde a colônia, pois “fugir do governo mercantilista era imperioso para progredir. E aqueles que faziam isso eram os empreendedores”. Trata-se aqui de uma dualidade que nos acompanha desde o início, entre o formal e o informal, “entre os costumes de baixo e as leis do alto”, que aparece em muitas outras formas no novo livro, em geral com sede no “sertão”, meio invisível, meio oculto, mas exibindo uma vitalidade que escapa das esferas (e estatísticas) oficiais, e constantemente as ameaça. É o que a historiografia às vezes designa como a “economia de subsistência”, tida erradamente (como sustenta Caldeira) como uma espécie de espaço vazio entre o nada e o complexo primário exportador. 

Econometria

Nenhum desses livros parcimoniosos em números revela qualquer menosprezo pela evidência empírica, tampouco procura escrever história unicamente como gênero literário. É como se as tarefas empíricas tivessem sido terceirizadas e o depositário dessa responsabilidade, sempre tratado com imensa reverência, fosse o que Caldeira chama — de forma muito peculiar — de “econometria”. 

O termo não é adequado senão como metáfora. Aí estão incluídas não apenas as comodidades decorrentes da digitalização de arquivos, como também, mais genericamente, o trabalho de coleta, tratamento e produção de estatísticas históricas. No primeiro caso, estamos falando da tecnologia pela qual os historiadores deixaram de trabalhar como personagens de Umberto Eco para se tornarem usuários de algo como um “Google” de arquivos na internet. 

No segundo, falamos de algo que, de maneira mais adequada, porém mais esnobe, devêssemos chamar de “cliometria”, ou seja, uma mudança de foco na disciplina, uma ventania quantitativa que veio pela escola dos Annales, na França, e paralelamente pelo trabalho de gente como Robert Fogel e Douglass North, vencedores do Nobel de Economia de 1993 — ­o primeiro, por incríveis modelos contrafactuais (se as ferrovias não tivessem existido?); o segundo, pelo estudo das instituições (estabelecendo direitos de propriedade, por exemplo) e seu papel no desenvolvimento.

O fato é que, por muito tempo, muita gente vinha articulando muitas teorias sobre o Brasil sem o devido apoio de Sua Excelência, o fato documentado, e a distorção precisava ser corrigida. Entre economistas, todavia, há uma longa lista de pesquisadores fazendo cliometria, ou história econômica tradicional, com os quais Caldeira poderia dialogar um tanto mais, em benefício mútuo.

História da riqueza no Brasil possui texto acessível, sem jargão, ainda que cheio de tonalidades. Caldeira é o exemplo vivo de que o elogio aos números pode servir para mantê-los a uma distância prudente, de modo a preservar a leveza. São 68 capítulos curtos, com uma veia de crônica, agrupados em quatro grandes e previsíveis seções: Colônia, Império, República Velha e atualidade. 

As novidades maiores se concentram nos 26 capítulos reservados à Primeira República, nos quais Caldeira trata do desfazimento e posterior reconstrução metamorfoseada da ordem mercantilista e corporativista que tão magnificamente descreveu nos capítulos anteriores. 

Por muito tempo, vinham se articulando teorias sobre o Brasil sem o devido apoio de Sua Excelência, o fato documentado

Nos capítulos sobre a atualidade (que tratam, na verdade, do Brasil pós-1930), o texto é mais rarefeito; o autor reconhece que “entrou onde não devia, a área contaminada pelo presente ou, pior ainda, pelas expectativas em relação ao futuro”. Mas não há dano, a atualidade logo se percebe, quando o leitor encontra a expressão “direitos adquiridos” tal como definidos nas Ordenações, mas exatamente como existem hoje no Brasil. Alusões não explícitas a criaturas vivas e atuantes no noticiário contemporâneo são abundantes ao longo de todo o livro, parecendo confirmar a máxima de Hobsbawm segundo a qual toda história é, em boa medida, história contemporânea disfarçada.

Os capítulos sobre a Colônia funcionam como uma encantadora aventura que termina na conjectura, sugerida pela “econometria” — embora em formas não reveladas ao leitor ­—, segundo a qual a magnitude da dita “economia de subsistência”, ou a “largura para o interior”, seria maior que a própria metrópole e invisível para esta, cujos prepostos seriam “caranguejos arranhando ao longo do mar”. 
Eram bons desígnios, com declaradas semelhanças com os Estados Unidos — e o leitor pode até se animar com esse potencial, mas só encontrará os números exatos do monumental fracasso econômico do Império (fornecidos por Angus Maddison, que, salvo engano, jamais foi chamado de econometrista) na página 295: a renda per capita americana era cerca do dobro da nossa em 1820, e passa a quase sete vezes em 1890. No período, o nosso crescimento acumulado corresponderia a insignificantes 4%. 

Não há surpresa nesse fiasco, tampouco no fato de que à época da independência dos Estados Unidos (1783) o governo de Portugal parecia empenhado em evitar o desenvolvimento da colônia. Boa parte desse vento contrário se desfez com a chegada da Corte em 1808, de modo a deixar claro que as frustrações subsequentes nos pertencem por inteiro, ou quase. 

De que lado estava Pedro 1º? O imperador, em matéria de maus governos, cravou uma marca difícil de ser superada. A ele devemos, conforme o gentil mas impiedoso relato de Caldeira, uma impressionante sucessão de desastres: o acordo financeiro da Independência, a desconfortável confusão entre escravismo e a soberania do novo país, o abuso do primeiro Banco do Brasil, uma tola guerra com a Argentina. O pior, e mais duradouro, foi a criação, na Constituição outorgada de 1824, de um conceito que fincou fundas raízes: o da liderança política “inviolável”, que “não está sujeita a responsabilidade alguma”.

Começamos errado, portanto, mas depusemos o nosso primeiro governante com imensa cordialidade e passamos à experiência de Regência, na qual despontou Diogo Antônio Feijó, herói desconhecido, o primeiro chefe do Executivo federal eleito pelos cidadãos brasileiros. O regente Feijó arruma as finanças, demite, corta, reforma e enfrenta revoltas, inclusive a que ficou conhecida como o Regresso, que termina vitoriosa com a antecipação da maioridade de Pedro 2º.

Caldeira não está entre os que exaltam o longo reinado de Pedro 2º como grande vitória política. Concede, no máximo, que o “sistema teve capacidade para processar conflitos num ambiente de estabilidade jurídica”, o que pode ser lido como capacidade de produzir apatia diante da mediocridade econômica. O Segundo Reinado consolidaria, conforme Caldeira, um amálgama entre o corporativismo português e uma dupla soberania, pervertida pelo Poder Moderador, bem como um anticapitalismo militante, implementado por um monarca amarrado ao escravismo e que se vê exilado, como seu pai, quando aquele se esgota.

República

O exame de todos os ângulos desse fracasso só eleva a angústia do leitor contemporâneo com o conceito de oportunidades perdidas. Sobe também a temperatura da narrativa com o “choque de capitalismo”, que começa a ter lugar no capítulo 38, com Rui Barbosa, o primeiro a ocupar a Fazenda na República e único personagem a merecer foto de página inteira no livro. Como a (história) política é feita de gestos, conclui-se que aí está o herói. Não é comum que seja celebrado pela passagem na Fazenda, nem mesmo por seus cultores, mas sigo Caldeira nessa divergência.

É de Rui a autoria de muitas das reformas paradigmáticas nos regimes de trabalho, nas empresas, no crédito, na moeda e também nos costumes. Pura destruição criadora, com suas bolhas, crises, polêmicas peçonhentas e revoltas se desdobrando nas mais variadas direções, do câmbio ao Conselheiro. Foi uma época extraordinária, na qual cada excesso parece gêmeo de outro, ocorrido no Império, mas na direção oposta, exatamente como na saga dos gêmeos Esaú e Jacó.

Há um eixo do enredo político particularmente bem trabalhado no livro pelo qual o velho patrimonialismo imperial vai deglutindo devagar a nova realidade institucional da República, reciclando as suas práticas (“o velho sistema estava muito entranhado nas práticas cotidianas”) e se reconstituindo na chamada política dos governadores. Os novos presidentes eleitos eram, na verdade, ungidos por eleições de aparência, encenadas por oligarquias locais e por partidos que mais pareciam ajuntamentos de cortesãos, numa espécie de nostalgia do Poder Moderador, conforme a expressão feliz de João de Scantimburgo. Uma lenta contrarrevolução que pode deixar no leitor a impressão de ter sido concebida por Campos Sales.

Herói desconhecido, o regente Feijó arruma as finanças, demite, corta, reforma e enfrenta revoltas

Aqui, uma diferença com o autor no campo da economia: não me parece que a insistência em aderir ao padrão ouro, tema pacífico e que ocupava toda a humanidade nas quatro décadas anteriores a 1929 — e que se apresenta de forma particularmente dramática na presidência Campos Sales (1898-1902), até por causa da moratória —, fosse “agir contra o interesse econômico da sociedade” nem “destruir o capitalismo advindo com a República”. A má vontade com a ortodoxia me soa um tanto exagerada, numa época em que o padrão ouro era inconteste, um dos pilares da civilização, ainda que os excessos de Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda de Campos Sales, possam incentivá-la.

Não se deve perder de vista, entretanto, que Murtinho não era muito diferente do mainstream de seu tempo, pelo menos em dois temas: quando falava na “pseudoabundância de capitais” (hoje isso se traduziria como “alavancagem excessiva e espúria” ou “excessos da financeirização”), criando “indústrias artificiais” (falsos “campeões nacionais” ou “bolhas”, no léxico contemporâneo), tocava um nervo sensibilizado pela crise de 1891. Há uma enorme e inconclusiva discussão na historiografia sobre o que há de falso ou verdadeiro na jogatina do Encilhamento (a euforia especulativa na Bolsa do Rio em 1888-92). Dúvidas legítimas e típicas de períodos que se seguem a excessos.

Como adesão ao padrão ouro era consensual, a dúvida se concentrava na escolha da paridade. O câmbio de mercado estava longe da paridade de 1846, à qual muitos queriam voltar. Esse desiderato não era bem um projeto monarquista ou fisiocrata. Vale registrar que, sobretudo nos anos 1920, havia uma ideia sutil e poderosa: a de que a inflação havia “roubado” o poder de compra (e que o governo havia se apropriado de senhoriagem ou de ouro que não lhe pertencia), e que isso deveria ser devolvido ao cidadão. Das muitas defesas do retorno aos 27 pence por mil-réis nesses termos, uma das mais interessantes é a de Monteiro Lobato, em 1927, através de seu alter ego Mister Slang, o inglês da Tijuca.

No século 20, sobretudo depois de 1930, e mais claramente a partir dos anos 50, a ideia de “devolver” o que o governo tomara com a inflação desceu à condição de anacronismo ou de manifestação de “inibição mental para captar a realidade de um ponto de vista crítico-científico […] particularmente óbvia no que diz respeito aos problemas monetários”, como diz Celso Furtado. A inflação passa a ser parte da Natureza, uma magnífica solução para os obstáculos à ampliação do Estado, visíveis na resistência a aumentar impostos, e uma solução política de amplo espectro para as cansativas limitações impostas pela ideia de equilíbrio nas finanças públicas. 

A inflação altera profundamente o funcionamento do governo depois de 1933, início oficial da experiência de moeda-papel, ou o papel-moeda sem lastro, como hoje existe, mas Caldeira só reconhece o fenômeno na época do general Figueiredo (1979-85), ao observar que “a inflação se tornou o principal meio pelo qual o governo federal passou a extrair riqueza da franguinha de pagar as contas”. A essa altura, a cocaína inflacionária já não era mais utilizada com moderação, para desatar nós políticos, como vinha se fazendo desde 1933. A catástrofe monetária dos anos 80 não aparece muito nítida em História da riqueza no Brasil, e ajudaria a iluminar controvérsias monetárias do passado. Mas isso é assunto de outro livro.

Depois das reformas pró-mercado de Rui Barbosa, de uma crise cambial e bancária, da moratória com ajuste ortodoxo de Murtinho, Caldeira oferece uma rica e detalhada narrativa do que se apresenta como uma espécie de segundo “choque de capitalismo” que toma forma nas sucessivas operações da valorização do café. 

É rico o relato das entranhas conceituais, dos heróis e da política em torno dessas operações, que engendraram uma nova e poderosa forma de intervenção do Estado na economia. A historiografia unanimemente reconhece o fenômeno como um experimento de keynesianismo avant la lettre, o que fica ainda mais claro depois da Crise de 1929, quando a impensável destruição dos estoques de café provocou em Furtado a observação: “Estávamos construindo as pirâmides de que falava Keynes”. 

Havia uma ideia sutil e poderosa: a de que a inflação havia “roubado” o poder de compra, e que isso deveria ser devolvido ao cidadão

Porém o leitor não deve se iludir — não era revolta, mas muito mais um compromisso entre uma ortodoxia metalista e um keynesianismo juvenil, de origem paulista, pelo qual se monta em 1906 a adesão ao padrão ouro (mas através de uma Caixa de Conversão com conversibilidade “na margem”, ou seja, só para suas notas, com o câmbio a 15 pence, não nos 27 pence de 1846), porém acoplada à valorização do café, que funcionava como reserva internacional. Primor em matéria de hibridismo, essa notável miscigenação financeira nem sempre foi bem entendida na historiografia. Funcionou em 1906-13 e foi reeditada em 1926-28, com uma Caixa de Amortização e o câmbio a 5,9 pence. Ortodoxia e heterodoxia parecem reconciliadas e deglutidas, ao menos até a Crise de 1929 e a Revolução de 1930 encerrarem esse capítulo. 

Os anos seguintes estão repletos de reviravoltas e subperíodos com experiências singulares. O crescimento não é impressionante na República Velha, como Caldeira parece supor: em média, 0,9% anuais para o PIB per capita, contra expressivos 3% entre 1930 e 1980, período em que o Brasil foi o país que mais cresceu no planeta. Nesse meio século especialíssimo, o país experimenta duas ditaduras bem diferentes, separadas por um período de “democracia populista”.

O traço a unir essas equações políticas, Caldeira explica, tinha a ver com o fato de que o “progresso capitalista e o mundo urbano eram enquadrados como filhos da tutela governamental e cercados de privilégios, ao passo que o sertão se mantinha separado e inferiorizado”. Faltou mencionar apenas a inflação como cimento, ou como fermento, para essa tutela.

Isolamento

O outro componente da mistura, perfeitamente percebido pelo autor como circunstancial, é o que designa como “o muro”, ou a funcionalidade do isolamento brasileiro diante da desintegração da economia internacional a partir de 1929. Daí a lógica e o sucesso de controles cambiais, protecionismo e substituição de importações, opções que precisariam ter sido revistas em algum momento nos anos 70, quando ficou claro que a globalização se estabelecera e oferecia oportunidades que países da Ásia começavam a aproveitar de forma agressiva. O modelo econômico “voltado para dentro” parece se exaurir, mas, conforme Caldeira observa, o general Geisel caminha na direção oposta, faz uma aposta na autarquia e na estatização, a velha fórmula consagrada, ainda que fatigada. Por que mudar? 

Os governos militares entregam de volta um país em “condições lamentáveis” onde “o futuro […] era cada vez mais passado, um passado que tinha cada vez menos futuro”, mas Caldeira não perde de vista que a Nova República piora as coisas ainda mais. O exame da Constituição de 1988 é um dos pontos altos do livro, e começa por observar que o país havia tido quatro cartas nos 33 anos anteriores — e mais: não é grande a distância conceitual da versão outorgada de 1824. 

Em 1988, produzimos um “híbrido”, diz Caldeira, no qual o “moderno princípio da soberania popular [estava] servindo de abrigo para diversas soberanias particulares corporativas”, e com isso “não são universais apenas os princípios gerais, mas universal é o clientelismo”. Como se tivéssemos, ao cabo de quatrocentos anos, criado novas ordenações, iluministas e corporativistas, em descompasso com o que se passava na planície. Tanto que Ulysses Guimarães fica em sétimo lugar nas diretas de 1989, que ocorrem durante o mergulho na hiperinflação. 

“Uma década de desgoverno”, diz Caldeira, antecede a estabilização em 1994, que só é possível com amplas reformas na Constituição recém-escrita. Sim, já chegamos ao tempo presente, do qual o livro, na verdade, nunca se afastou, e diante de uma problemática muito antiga: a política parece atrapalhar o desenvolvimento. 

A “cabeça mística” do regime corporativista era o rei, mostra Caldeira ao falar de Portugal, “o único que detinha o conhecimento da dose justa de retribuição que cada órgão desse corpo merecia”. Quatro séculos depois, quem assume a função não é mais o rei nem presidentes imperiais nem ditadores, mas, genericamente, o Estado, e de novo a cabeça parece pesar mais que o corpo, mais até do que antes.

Quem escreveu esse texto

Gustavo H. B. Franco

Economista, escreveu A moeda e a lei: uma história monetária brasileira, 1933-2013 (Zahar).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.