Economia, História,

A moeda na letra da lei

Coautor do Plano Real, Gustavo Franco reconstitui a história monetária do país a partir da legislação e das instituições

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

A moeda, sabem bem os economistas, se sustenta pela confiança; mas essa confiança não cai do céu. Depende de uma institucionalidade, de uma ordem de incentivos e desincentivos, freios e contrapesos e mecanismos institucionais de coordenação, que são estabelecidos em lei. Nesse sentido, a moeda é uma construção jurídica. Essa é a primeira mensagem que se extrai do livro A moeda e a lei, do economista Gustavo Franco. Não é a única, nem poderia sê-lo em uma obra de fôlego, que traça a história da moeda brasileira em oito décadas.

Nas contas do economista, em 1994, R$ 1 equivalia a 2,7 quatrilhões de mil-réis de 1942, ano em que houve a primeira troca do padrão monetário brasileiro. A inflação é, de fato, uma velha conhecida dos brasileiros, e sua análise pode ser encontrada em qualquer livro de economia que se ponha a discutir o tema da moeda. 

Mas Franco escreveu um livro diferente. O tempo é o fio condutor da narrativa, não são os gráficos nem as equações — há não mais do que alguns cifrões espalhados aqui e ali. A reconstrução da história monetária do Brasil se dá através da análise econômica dos textos de leis, regulamentos e decretos do direito monetário.

Franco reconstrói a evolução institucional da moeda no seu entrelaçamento com o câmbio e a estrutura do crédito no Brasil. Os personagens-chave são os de sempre — o próprio autor é um deles —, mas, ao figurarem como signatários de leis, decretos, constituições e medidas provisórias, a narrativa ganha novas cores. A precisão de modelos econômicos dá lugar à discussão e à interpretação de textos complicados de legislação, sua motivação política e sua natural abertura a controvérsias.

A narrativa começa em Getúlio Vargas. Foi sua, e também de outros personagens da história do país, como Oswaldo Aranha, a assinatura no decreto que, em 1933, instituiu um novo regime jurídico para disciplinar a moeda nacional: o da moeda fiduciária. A moeda fiduciária não tem um valor intrínseco, nem representa uma quantidade de metal (como o ouro). Ela é a expressão da confiança social em seu emissor, o Estado, e é aceita por força do direito. Seu lastro, portanto, é apenas a confiança pública. E o mecanismo indutor dessa confiança é a lei.

Fim do padrão-ouro

É bem certo, e o livro deixa isso claro, que o abandono do padrão-ouro foi antes uma onda internacional do que uma mudança apenas nacional. A crise de 1929 fez ruir aquele modelo monetário em toda a parte. A Belle Époque do ouro não mais retornaria nos mesmos termos. O decreto de Vargas, curiosamente, destacava em sua motivação a “natureza transitória” do curso forçado da moeda nacional. Depois de mais de 80 anos, não é possível vislumbrar qualquer retorno ao sistema do padrão-ouro — não só no Brasil, mas no mundo.

A trama de quase novecentas páginas se dá em torno das leis que estabeleciam o regime da moeda brasileira — ou melhor, das moedas brasileiras, pois, como nos lembra Franco, em pouco mais de meio século tivemos nada menos que oito delas.

As leis foram muitas e, em consequência, complexas questões jurídicas foram forjadas envolvendo as mais variadas obrigações de direito (contratos, salários, tributos), tanto durante o período inflacionário como em decorrência dos famigerados planos econômicos de estabilização. O Judiciário foi recorrentemente convidado a se manifestar sobre a legalidade e a constitucionalidade de medidas econômicas “inventivas”, que buscavam “tratar” o monstro da inflação. Até hoje há ações judiciais pendentes de julgamento. Economistas e juristas ainda batem cabeça na busca por uma solução.

Algumas leis passam rápido, outras duram mais. Mas, por trás de toda a minuciosa análise da legislação, há um sentido de permanência. Os pilares do financiamento inflacionário do Estado já estavam lançados nos anos 30. A moeda teria curso forçado. Os bancos públicos teriam papel determinante tanto para a dinamização do crédito quanto para o suporte a pactos políticos. E o câmbio seria administrado primeiro pelo Banco do Brasil, adiante pela SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito) e, por fim, pelo Banco Central. 

Evitaríamos, assim, a indexação cambial ou a dolarização lançando mão de uma infinidade de leis e regulamentos (e também de construções e interpretações jurídicas), todos criativos e copiosos na arte de instrumentalizar a correção monetária, manipular índices de preços e, enfim, formalizar a separação das funções da moeda (como unidade de conta e meio de pagamento).

A demora na criação e na limitação do funcionamento do BC azeitava o sistema. A gênese do Banco Central, por aqui, foi tardia comparativamente a outros países, inclusive na América Latina. Sua história também teve percalços. O Banco Central do Brasil nasceu independente, mas, depois de três anos de vida, foi efetivamente incorporado à política econômica desenvolvimentista do governo. A autoridade monetária nasceu “manca”: compartilhava seus poderes com o Banco do Brasil, um banco público.

Plano Real

A centralização da política monetária somente se iniciou na década de 1980, com o fim da “conta movimento” do Banco do Brasil junto ao Banco Central, e com a consolidação do Plano Real, que retirou o poder de bancos públicos estaduais de criarem moeda. Seguiu-se um período de forte institucionalização, com a criação do Comitê de Política Monetária (Copom) e do sistema de metas de inflação, que fez convergir a estrutura brasileira com a de seus pares. 

Não surpreenderá ao leitor minimamente familiarizado com o debate monetário brasileiro encontrar nos últimos capítulos do livro um formidável ataque à “nova matriz econômica”, que na visão de Gustavo Franco foi uma tentativa deliberada de destruir os pilares da normalização monetária, tudo em nome de duvidosas políticas anticíclicas. Os esforços da era FHC [1995-2002] são, então, retratados pelo que foram: tentativas de reorganizar a moeda e o crédito, ao fim e ao cabo, sabotadas.

Apesar da prosa contida e do tom analítico, há uma indisfarçável crítica a algo de arcaico na mentalidade brasileira. O Brasil, nos lembra Franco, é o país em que a inflação veio em tempos de paz, sem guerra e sem grandes catástrofes. Fica ao leitor o sabor de que há algo esquisito nessas terras. 

Não é uma mensagem nova, nem se encontra nas palavras de Franco um tom de desespero ou melancolia. O drama não está na prosa, mas no enredo. A história monetária do Brasil — legislada, redesenhada, planejada e, por vezes, riscada — é também um drama coletivo: o da construção da confiança social na moeda, na institucionalidade das autoridades monetárias e na lei do Estado. O leitor interessado por esses temas faria bem em consultar essa obra, que já nasce como um clássico da história jurídico-econômica do país. 

Quem escreveu esse texto

Bruno M. Salama

É coautor de Líderes improváveis (Editora FGV).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.