História,

A escravidão vista de fora

Contratada pela elite cafeeira na década de 1880, educadora alemã criticava os fazendeiros que não educavam os filhos de seus escravos

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

O que será dos escravos livres, se a eles nunca se ensinou nada que lhes pudesse ser útil? Por que o ócio é tão cultivado na classe senhorial, e é até visto pela sociedade como um prêmio, uma distinção? Por que os brasileiros são tão indisciplinados? São algumas das muitas perguntas que faz a si mesma Ina von Binzer, neste livro que é uma coletânea de cartas enviadas por ela à Alemanha, nas quais descreve suas muitas agruras e nem tantas alegrias vividas em sua estada no Brasil, como preceptora de filhos de ricos fazendeiros escravocratas, entre 1881 e 1884, no Rio de Janeiro e São Paulo. As respostas que ela mesma se dá não são lá muito elogiosas ao Brasil e aos brasileiros daquele tempo.

Os meus romanos foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1956, pela Anhembi, com prefácio de Paulo Duarte (replicado nesta edição como posfácio). A partir de 1980, uma versão bilíngue, pela Paz & Terra, teve várias tiragens e agora esta, a sétima edição, com prefácio de Keila Grinberg (em que o nome Binzer aparece grafado de forma errada várias vezes como Binzen), apenas em português.

Entendida por vezes como uma autora ranzinza, preconceituosa e racista, seus apontamentos sobre o Brasil parecem antes manifestações de uma observadora perspicaz, com educação, refinamento e talento suficientes para descrever o que vê e o que sente e apresentar ao leitor — à leitora das cartas, Grete — um panorama bastante particular e ao mesmo tempo amplo, verdadeiro, muitas vezes divertido e, por vezes, comovente da realidade de um país escravocrata às portas da Abolição.

Chega ao Brasil com 22 anos, o mais provável por decisão própria — pela vontade de “conhecer os trópicos”, a exemplo de tantos professores alemães que ainda hoje vêm ao Brasil com o mesmo objetivo —, e viu-se aqui diante de pessoas, costumes, paisagens, arquiteturas e atitudes perante a vida em nada semelhantes às que estava acostumada. O choque da nova e inesperada realidade e a inexistência de qualquer pessoa com a qual pudesse comunicar-se em sua língua materna, se não dão conta de explicar, pelo menos sugerem o quão intenso pode ter sido o sentido de deslocamento, de solidão e desnorteio a que esta professora esteve exposta.

Nada mais natural então que ela, “alemã inflexível” e protestante, busque uma utilidade em seu desconforto: escrever cartas. Grete — que nem sabemos se é de fato uma amiga querida ou uma invenção de Ulla, o pseudônimo que utiliza ao subscrever as mensagens — parece mais uma abertura de suas anotações em um diário que propriamente uma personagem a quem as cartas são enviadas, respondidas e treplicadas. Raramente a autora faz menção a algo que Grete tenha escrito. Mal faz menção à família, e uma vez apenas pede para que ela nada diga à sua mãe sobre uma terrível dor de dentes que a aflige.

Estranha que os patrões não sejam capazes de enxergar que estão preparando a pior geração possível

Penso não ser desvario a suposição de que tenha escrito as cartas e nem sequer as enviado, já com planos de publicá-las em livro, o que ocorreu na Alemanha em 1887, depois de sua volta ao país. Dona de uma escrita leve, delicada, precisa e econômica, e também de apurada finura de raciocínio, nos revela sem meias palavras aquilo que era natural, não reprovável para a sociedade brasileira da época, mas que batia de frente com o que ela —  com sua Weltanschauung alemã, bem educada no luteranismo — poderia esperar de situações similares. É implacável ao descrever com sabor e vitalidade os usos e costumes dos senhores, de seus irrequietos e mimados alunos, dos escravos, do povo que via nas ruas, e francamente desdenhar deles.

Ela sem dúvida não é partidária da escravidão, deixa isso claro. Mas vive com os senhores, ensina seus filhos e vê os escravos com um ar de superioridade absoluta. Nem por isso deixa de tratar bem aqueles que a servem. Condói-se com a dor e o isolamento de um escravo leproso. Preocupa-se com o fato de que aos escravos, especialmente aos filhos destes, já libertos, nada se ensina, vê a Abolição se aproximar e crê que ela será a ruína tanto de senhores como de escravos, estes largados à mendicância, aqueles sem força de trabalho em suas terras, porque os “camaradas”, os que são remunerados, “não rendem nem a metade de um preto”. Diz ainda: “Segundo o que venho observando, tenho a impressão de que o Brasil, logo de início, irá sofrer horrivelmente com a abolição da escravatura, porque ainda não se decidiram aqui pela emigração europeia, nem ofereceram aos mais úteis imigrantes — os germânicos — condições bastante favoráveis”.

Com a Abolição, sustenta, as cidades se encherão de “elementos”, se não nocivos, pelo menos inúteis. Estranha que seus patrões, tão humanos e inteligentes, não sejam capazes de enxergar que, em não providenciando educação para os filhos de seus escravos, estão preparando a pior geração possível para conviver mais tarde com seus próprios filhos. Aguda observação. Algo mudou?

Um ser fora de seu habitat que observa e relata com engenho as diferenças, mas quer fazer parte dessa sociedade que a acolhe. E isso ela consegue, ou antes tenta conseguir, com seu ofício de professora. Mas seus alunos e alunas, com rara exceção, são verdadeiros pesadelos, impossíveis de controlar, impossíveis de ensinar, desobedientes a qualquer mandamento, irremediavelmente mimados, refratários a qualquer método de ensino, especialmente ao de Karl Bormann, pedagogo alemão e seu guia, cujas técnicas tentou uma vez aplicar inutilmente, para concluir que no Brasil haveria de se desenvolver uma pedagogia local, de brasileiros para brasileiros. Mas ninguém se interessava por isso, o que a deixava perplexa.

Amava a cidade de São Paulo, onde esteve por pouco e feliz tempo. O título foi inspirado em alguns de seus alunos, que tinham nomes pomposos de figuras proeminentes do império romano. Já o Rio, cuja beleza imponente não cansava de admirar e louvar, a deixava atarantada por causa do barulho e da quantidade de pessoas sem ofício, cuspindo e jogando lixo nas ruas sem o menor constrangimento. Ainda assim, diz ela, “já vou me acostumando a isso”.  

Quem escreveu esse texto

Marcos Renaux

É tradutor e adaptador de textos teatrais.

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.